5.3.18

O avesso do horizonte


Four Tet, “Scientists”, in https://www.youtube.com/watch?v=DsPfafTZys4    
Uma cisma das pessoas: travam o passo à frente do mar, sentam-se no rebordo do cais e demoram o olhar no horizonte. Parece que interrogam o horizonte. Ou parece que atiram o olhar para além do fio do horizonte, congeminando as respostas demandadas nas cortinas escondidas atrás do que o olhar alcança. Dir-se-ia: quadra com um perene estado de insatisfação. Não lhes chega o que têm. Afundam-se numa crise de abundância.
Cercados por múltiplos pontos de contacto, sabendo que não falta escolha para arbitrarem a decisão, ficam reféns da indecisão; não conseguem decidir entre uma das opções. E não é por não terem serventia, ou por delas se ter ausentado o pergaminho da confiança. É apenas uma crise de abundância. Mesmo assim, por impossibilidade da escolha, parece que todas as alternativas perfiladas se invalidam no momento em que a decisão fica deserta. Talvez não fosse mau princípio ensaiarem a extorsão de si mesmos. Despojando-se das nuvens que se encastelam no horizonte, tornando-o baço. Como se os monges estivessem cobertos de razão ao aconselharem hábitos monásticos, sem a atribulada tentação dos hábitos sumptuosos que são a causa da fartura imberbe.
Talvez não fosse má ideia parassem a automutilação, pois a crise de abundância é uma contradição de termos. Seria a altura de entrarem em cena os profetas da moralidade avisada, aqueles que erguem o dedo em riste, vestem pose solene, do alto da sua gravitas, e protestam a usura de quem se diz encurralado por não saber escolher entre as tantas escolhas que desfilam perante o olhar. Seria a altura de os advertirem dos muitos mais que se ensimesmam na modéstia das escolhas e não protestam. E então, em ascese instantânea, sentavam-se no mesmo cais sobranceiro ao mar. Desta vez, para interrogarem as suas fundações sobre o avesso do horizonte. Na síntese da possível exaustão dos elementos, ao serem coagidos pelos filamentos rarefeitos que se alojam no avesso do horizonte.
Às vezes, as pessoas deviam ser obrigadas a experimentar as provações. Para se deixarem de meias-mesuras e não serem casos perdidos no recorte da sua imponderação. Uma desconstrução imperativa, sem ser mera simulação. Uma desconstrução substanciada, para os incessantemente profetas dos queixumes cessarem a autocomiseração que é um ultraje. Aos demais, em manifesta pior condição; e a eles mesmos, que protestam, até, contra o redondo da lua.

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