19.2.18

O desenho da empreitada


Linda Martini, “Boca de Sal”, in https://www.youtube.com/watch?v=KtiqMzmRX90    
Que artes são precisas para o desenho da empreitada? Quem é convocado ao desenho da empreitada: o próprio, que a encomenda, ou outrem a quem a empreitada é encomendada? E qual é a empreitada subjacente à empreitada principal?
Pode-se partir de um zero. Ou de uma folha em branco. E deitar as artes necessárias sobre a curvatura do zero, ou sobre a folha de papel ainda em sua alvura, e começar a esboçar as esquinas da empreitada. Contra o preceituado pela voz popular, não há impedimentos para começar a desenhar a empreitada a partir do seu telhado. Deixa-se a levitar, o telhado, enquanto as ideias se amontoam no sentido da parte restante da empreitada. Dir-se-á que a espontaneidade domina o plano – ou, em sendo tributário ao rigor dos conceitos, não há plano matizado no estirador. Uma ideia aqui, outra ali, uma inspiração súbita e inesperada que obriga a alterar uma ideia prévia, ou até cancelá-la, a evocação de um instante pretérito como matriz para parte da obra; as peças de um puzzle em desarmonia, aleatoriamente subtraídas a um caldo de influências sem cunho próprio.
Dir-se-á: esta empreitada vai a caminho de ser uma catástrofe, ou uma obra procrastinada, ou até figurar na categoria dos “elefantes brancos”. Não necessariamente. Ninguém esperava à partida, muito menos os seus fautores, que a empreitada fosse pertencer ao escol das obras primas. A espessura do tempo dá cobertura ao progresso da empreitada. O progresso é feito de avanços e recuos, às vezes dois passos atrás para redesenhar a perspetiva, já que é preciso ir mais atrás para calibrar a visão; e, depois dos dois passos atrás, um pequeno passo à frente, mas um passo incisivo. Na roda dentada dos paramentos, onde a matéria-prima indispensável é inventariada, o mandante da empreitada (ou o próprio fautor, consoante a destreza o possibilite) remam em águas tumultuosas. As decisões esbarram em dilemas. Muitas vezes, as decisões ficam reféns da encruzilhada em que travaram o passo.
Nunca se disse que a empreitada era acessível: se as deliberações fazem parte da cartografia das coisas dilacerantes, não há como dessaber as coisas difíceis que aparecem pela frente. O segredo está no desassombro de um passo, que se espera certo (por mais que se consuma na chama da subjetividade), que desate o dilema. Por mais dilacerante que seja este parto.

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