5.1.18

Dois passos dentro da água

David Sylvian, “Nostalgia”, in https://www.youtube.com/watch?v=BHpdAONEmZE    
Sonham uns com asas que lhes dessem a capacidade de voar. Para poderem planar sobre as terras, exercendo o olho de pássaro para embolsarem a paisagem no seu bornal, sem dela serem vigilantes. Outros há que sonham poder andar sobre a água. Guardando em si uma alquimia indescritível, podendo arriscar os pés pelo espelho de água dentro, sem temor das correntes, das marés, ou das ondas. Porventura, para apreciarem as costas das ondas, atributo recusado quando contemplam o mar situados desde o lugar onde o mar vem beijar a areia. Ou, porventura, apenas para saberem que é possível meter os pés onde outros julgam ser o precipício, sem serem atraiçoados pelo peso inestimável da gravidade.
Não haveriam de supor tal sonho como sucedâneo de uma qualquer metafísica metáfora: não acreditam em divindades. Dois passos dentro de água e nem os pés molhados. Avançando pelo mar, sem temor, até se saberem num horizonte fora do alcance da linha de costa. Para se sentirem autênticos arquipélagos, sem outros semelhantes nas imediações. E, perseverando na sua alquimia, meterem as mãos nas águas do momento para refrescarem o rosto de rugas hirsutas, adivinhando-as águas medicinais e as rugas extintas mercê do medicinal tratamento.
Mais dois passos noutra latitude, para experimentarem os aromas que se arqueiam em águas só aparentemente iguais. Cuidariam de evitar os grandes navios, paquidermes ambulantes que sulcam os mares em demanda dos mundos diferentes. Os navios podem causar dano maior do que os mares desandados com a força dos pés que não se saciam com o desfile do conhecimento. Já que se fala de alquimia: nem até as tempestades providenciariam o medo institucional pelo mar, e os pés continuamente arremetendo, em passos duplos, pelo mar que houvesse por ultrapassar.
Um dia, cansados de tanta demanda, sedentos de terra firme, os pés regressam a cais seguro. Originais, amadurecidos, repletos de uma riqueza incondicional, não preparados para o ato da partilha como está convencionado nos compêndios da existência imperiosamente comunitária. Pois os passos pelas águas dentro não são do domínio da sensibilidade comum. Diga-se que não passam de matéria onírica. E os sonhos, não contam na cartografia dos sentidos?

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