10.1.18

Digo ao entardecer para se demorar

Craig Armstrong, “Wake Up in New York”, in https://www.youtube.com/watch?v=RJ9AgSikG7c    

O doce candeeiro empresta a luz suave ao entardecer. Está frio. Sentimos o rumor da lareira que crepita aos nossos pés. Levantamos um copo de vinho. O vinho serve para aquecer os corpos, como se o fogo mediano da lareira não chegasse. A luz timorata do entardecer insinua-se através da janela. Ajuda a absorver os fogachos arrematados pela lareira. O silêncio composto só se despoja no altar das nossas palavras e no crepitar da combustão. Afinal, os corpos já não estão frios. Em sua entrega, entrelaçam-se numa combustão que faz a combustão da fogueira corar de inveja. E eu digo ao entardecer para não se apressar. Digo: que enquanto for entardecer, retemos as vigas do tempo na mordaça de que formos autores, uma mordaça higiénica que torna o entardecer num doce arrastamento, como se houvesse carestia em adiar a noite – talvez por sabermos que a noite se sufraga num silêncio diferente, no silêncio que larga âncora em demanda da embocadura do sono, sem sabermos qual é a colheita dos sonhos. Não é que não mereçamos o sono – e os sonhos. Congraçamos na mais alta visibilidade de nós o estatuto das paisagens que congeminamos. É como se fôssemos pintores impressionistas que sabem emprestar a inteireza da alma às paisagens que sabem inventar. Precisamos do entardecer iterado para compor a tela com as cores algaraviadas que são precisas para as paisagens nosso paradeiro. A fogueira continua a ser o sonoro pano de fundo, rimando com o entardecer invulgarmente invernal. Julgamos que a medida do entardecer é a usura dos copos de vinho – ou, melhor dizendo, a serventia do vinho que sorvemos, languidamente. Podemos meter uma medida artificial pelo meio, à mercê da renovação dos copos com mais uma medida de vinho; não interessa, desde que a artificial medida seja da nossa lavra, em comando das ordens infundidas pela vontade que sobressai. Temos a impressão – e não é infundamentada – que o tempo ficou suspenso no decente ergástulo da nossa vontade. Sentimos um entardecer que quer ser imorredoiro, na exata medida do que por nós for ordenado. Na exiguidade desse momento que fazemos nossa quimera, continuo a dizer ao entardecer para não se demorar. Nos cálculos posteriores, haveremos de saber tomar nota desse imorredoiro prazer.

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