7.11.17

Por dentro de um papel, até o fingimento não ser a pérgula de um teatro

Máquina del Amor: “Bonitinha Mais Mocada”, in https://www.youtube.com/watch?v=hk6hfm_TvxI    
Excruciante método para colher os frutos da sobrevivência – da gesta não sobressaltada por equinócios desviados, com as lamas fétidas de ornamento à volta do pescoço: investe-se a personalidade toda dentro de um papel, mesmo sabendo que o papel é a adulteração da personalidade na sua pureza. A páginas tantas, já não tem importância a pureza – da personalidade, do que quer que seja, desligada da corrente a fábula da inocência. Até deixará de ter remédio a dúvida existencial sobre o que é a personalidade, menos se sabendo se ela quadra com uma pureza que lhe seja por isso inata, ou se passou a ser matéria viva de outra pureza por ação da sua prévia transfiguração.
Só há uma certeza: deixou de haver certezas. Concorrem nas balaustradas firmes, onde as mãos se amparam em refúgio do precipício, as imagens insubmissas. Crê-se que procedem da incomparável rebeldia que se entreolha no exterior dos limites, para os dorsos carregados de infâmia, neles sobrepujada por mediação de apóstatas de si mesmos que se desfazem das apoplexias em cima dos dorsos outros, e percebe-se que o lugar próprio se deslocou para outro centrípeto. É um nomadismo ao início irritante: as pessoas habituam-se ao sedentarismo, não pelo sedentarismo, em si desprovido de méritos, mas porque a complexa roda dentada onde todos se articulam a tal obrigou. Depressa deixa de ser irritante, o nomadismo. Temos de procurar lugares diferentes de onde se consiga ver as coisas por outra lente.
Diz-se que nós somos a nossa circunstância. Mas a nossa circunstância transcende o lugar que ocupamos, é ditada pela confluência de ações que nos são exteriores. São variáveis que não dominamos. Descontando o exagero da metáfora, é matar ou morrer: em semântica própria do assunto, é ser ultrapassado pelas circunstâncias em nome de uma pureza invisível, ou transfigurar o eu para não sermos meros figurantes sem um módico de influência. Que fique bem entendido: o módico de influência não tem a ousadia de nos colocar no papel de atores principais, a comandar as jogadas que extravasam em ingerências nos deslimites de nós; cuida-se apenas de moderar as cadeias de acontecimentos que as circunstâncias exteriores podem causar.
Temos de desempenhar um papel. E por dentro desse papel, podemos deixar ser o eu a que estávamos habituados. Aprendemos a plasticidade do eu. Não se trata de ardilosamente congeminar um eu coberto por fingimento. Com a complexa roda dentada em funcionamento, a perder de vista seus mecanismos, já não se certifica o que é fingimento e constitui pureza de personalidade. Um profeta das coisas na sua pureza inatacável protestava que não podemos curvar a espinha dorsal, sob pena de jamais a conseguirmos endireitar. Pode ser que sim. O sentido prático da vida, esculpido pelas indomáveis circunstâncias a nós exteriores, contrapõe que se formos passivos neste teatro podemos acabar com a espinha dorsal também curvada.
O fingimento deixa de o ser quando o restolho que arde na fogueira ensina que somos todos atores, e em papeis variáveis, na exata proporção das exigências que sobem ao mapa. Acabamos todos por ser atores.

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