17.11.17

Casa nova

Surma, “Hemma”, in https://www.youtube.com/watch?v=5iMEbODsJaY    
As gastas paredes, condoídas pela alvenaria à mostra, vociferam a dor excruciante da casa. Da casa assim arvorada em casa antiga. Não é do musgo, nem das teias de aranha, ou dos rombos causados nas paredes, aqui e ali, ou da cor desbotada por ação dos elementos em sua conjura com o tempo infame. Envelheceu, a casa. O que também não é estorvo: às velhas coisas não se subtrai préstimo, pois até delas se diz terem o predicado do esmero (e vinha a eito a metáfora do vinho do Porto).
A casa tornou-se um refúgio de que não apetece ser condómino. Por maus-tratos e injúrias sem vencimento. Tornou-se gasta e foram os seus fautores a torná-la desprezível. Porque dentro desta casa há um eflúvio torpe que se eleva ao promontório da sabedoria e olvida – por conveniência, ou por manifesta incapacidade de deitar o olhar no avesso de si mesmo – que os telhados de vidro são o expoente da transparência, a caução que empresta pudor aos limites envidraçados. Tornou-se uma casa que desapetece. Uma casa órfã, na desidentificação da fronteira que adeja sobre o dorso dorido. Uma casa condenada a ficar desabitada. Deixando de ter lugar no mapa, devorada pelo esquecimento.
É tempo de esquadrinhar uma casa nova. Uma casa-cais que saiba ser hospedeiro lugar, ensinando a generosidade que ficou dissolvida nas paredes pútridas da casa órfã. A casa nova, estamento da reaprendizagem. Com a casa antiga, no punho fechado da sua decadência, parte do que fora aprendido havia-se gasto. Era uma casa fétiche, apenas, um revólver contendo uma bala única e constantemente apontado à fronte, nunca se sabendo quando calhava o azar de uma absurda roleta russa. O desassossego como princípio geral do comportamento. Uma casa que passou a ser impossível. A própria casa pedindo, em gritos lancinantes, para ser tomado seu lugar por outra, merecedora.
A casa nova espera. E não será o estertor restante, o tempo em sobra na casa órfã, que à migração aprisione em adulteração. É possível que sejam adriçados compartimentos estanques, para travar a insídia derradeira que o fautor da casa órfã possa tentar. A casa nova, por mais desconhecida que seja, é um lugar próprio que se afiança: mesmo às escuras, um olhar contemplativo lança mão no trunfo atirado à mesa. Enquanto é tempo. O mapa da casa nova fica para depois.

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