30.11.17

É só um nome

Beirut, “East Harlem”, in https://www.youtube.com/watch?v=9p1l5HRd36o    
Não: um nome não é a garantia inteira na posse dos bravos comandantes, todavia sem séquito. (Correção do exposto: o séquito apenas existe nas limitadas baias da imaginação desses comandantes.) São os ardis em que repousam, sua denúncia cabal. E, contudo, persistem em servir o seu nome a público escrutínio, por mais escasso que seja o público, e deitam-se à noite num onanismo de intelecto por se julgarem gurus. Gurus de coisa alguma. Pois são só um nome.
Por dentro do seu terrível ensimesmar, pode parecer coisa pouca – um nome, coisa pouca. Não é fazenda que quadre com tão elevada estatura em que se colocam. Por fora, nas medidas que não se restringem ao estertor assinalado pela cortina de sombras em que medram, um nome é coisa muita, coisa bastante. É nome que afirma uma identidade. A identidade distintiva, impressão digital irrepetível. É isso que importa. Desliguem-se os candeeiros que se arqueiam sobre competições inanes onde se pesam identidades rivais. É uma competição impossível, por razoável ausência de mensurabilidade. Não se comparam identidades, por mais que haja medalhas ostentadas à lapela e delas se faça garbo como traço distintivo que cauciona superioridade. Pois um nome é só um nome, e tem a importância sublime de ser um nome como não há outro.
No edifício em ruínas, onde comandantes desta linhagem desapoderados de si mesmos investem em fantasiosos trajes imperiais, um nome reduz-se às cinzas a condizer. Só numa estalinista versão da história pessoal se podia convencionar que houvera alguma grandeza numa qualquer dimensão pretérita. Um nome que queira a projeção por cima das suas capacidades é o pior dos pretensiosismos. É a negação do próprio nome, sem correspondência com o chão habitado por esse nome. Os nomes que querem sair de si e emprestar-se ao embuste do que não são, denegam-se como nomes. São o aviltamento do próprio nome, esvaziado o nome próprio de um sentido.
Prouvera que a humildade fosse critério. E que as desandanças fossem juízo próprio da aprendizagem: o nome regressaria ao seu império de simplicidade, sem pretensões excessivas, sem desmedida de si mesmo. Pois tudo isso é a antítese de um nome. Um nome – que fique bem-entendido – é só um nome. E essa é a sua indelével grandeza.

29.11.17

O gordo vai à baliza

Nick Cave & the Bad Seeds, “Red Right Hand”, in https://www.youtube.com/watch?v=RrxePKps87k    
Éramos altivos, incultamente arrogantes: ao pobre do gordo, vasilha das sobras, a baliza destinada. E nós, os elegantes, os pujantes na forma física, tratávamos de arranjar o jogo no resto do campo. O gordo tinha utilidade: abundante nas carnes, ocupava mais espaço na baliza: mais difícil ficava o golo para o adversário. O gordo, resignado com a disfunção que não o atormentava, anuía. Era o modo único de participar no jogo.
Hoje, não sabemos a quantos de nós restaria a incumbência de ir para a baliza. Não sabemos do paradeiro uns dos outros – e muito menos do gordo. Ninguém sabe se o gordo não fez uma cirurgia para implantação de banda gástrica e teve sucesso na empreitada, passeando-se garboso e irreconhecivelmente elegante. E quantos de nós, entretanto capitulando na preguiça que, segundo alguns compêndios, rima com qualidade de vida (num embuste rigorosamente alinhado para entreter consciências mal-amanhadas), quantos de nós tombaram no ardil do peso excessivo e das panças arregaçadas sobre os quadris? Teriam, todos esses, de ir à baliza. Talvez um congestionamento do espaço adjacente à baliza acontecesse, e o campo restante ficasse tomado pela fraca densidade populacional. O jogo já não seria igual.
Ontem ninguém era gordo, a não ser o gordo de serviço. Escarnecia-se do gordo, porque o gordo não conseguia ter a destreza dos demais e não aprendia com isso: ao almoço continuava, sôfrego, a devorar a comida que vinha ao seu prato e ainda fazia olhos ávidos para a comida que os mais vagarosos iam deixando arrefecer no prato. O gordo ficava para trás em tudo. Não se parecia importar. Só queria fazer parte da pandilha, nem que fosse como a aberração eleita pela pandilha. Ia aprendendo o que mais tarde muitos dos outros tiveram de aprender a contragosto: os custos da socialização forçada obrigam a engolir, e muito, em seco.
A aresta viva do tempo abate-se sobre as cicatrizes do corpo. Por falta de paradeiro, não sabemos quantos de nós hoje são quase gordos como era o gordo. Talvez a fraca memória aplaque as dores das carnes que ganharam abundância. Os obesos de agora lembram-se de como escarneciam o gordo da altura? Não tem mal. A amargura mal disfarçada do tempo que por eles passou (e mal) não dava, sequer, para os convencer a irem à baliza.

28.11.17

Sobre as fronteiras dos limites (ou os limites das fronteiras – nem sei bem)

Alex Cameron, “The Comeback”, in https://www.youtube.com/watch?v=vJ0AzJWKHiY    
(Depois do filme “O Quadrado”, de Ruben Östlund)
O que acontece quando um museu ousa no anúncio de uma obra de arte, violando os preceitos fixados pelos vigilantes da linguagem admissível, porventura contrariando a mensagem desencriptada pela obra exposta?
Não sabemos, não saberemos nunca, de fonte segura, onde estão os limites da liberdade de expressão. Deles se diz ser matéria volátil: as fronteiras da liberdade de expressão variam com as pessoas. Também se convencionou, num mundo moldado por imperativos categóricos, que a liberdade de expressão é corrompida quando atinge determinados foros. Diz-se: há assuntos tabu, palavras e contextos impronunciáveis, para não deixar suscetibilidades abraseadas. A agência de comunicação contratada pelo museu ensaiou um filme sobre a obra de arte “O quadrado”. Os criativos realizaram um filme que teria de chocar a audiência: uma menina loira, sem-abrigo, entra no quadrado na companhia de um pequeno gato e é vítima de uma explosão, os dois corpos estilhaçados metaforicamente.
Na Suécia há muita mendicidade. Muita dela tem origem nos refugiados que afluíram ao país. Eis o cocktail explosivo do filme-anúncio. Sobressaiu o nojo pelo teor e pela mensagem que é um atentado contra os dogmas nutridos pela maioria bem-pensante. Curiosamente, pensar-se-ia que essa maioria bem-pensante tem nas elites culturais um guia espiritual – pois os intelectuais devem colocar os seus dotes (bem-pensantes) ao serviço dos demais. O curador do museu defendeu-se: o museu, como espaço de artes, não pode transigir com ataques à liberdade de expressão. O que estava em causa era a liberdade de expressão do museu, não a mensagem do pequeno, e talvez grotesco, filme. Às elites culturais não devem ser impostos os mesmos coletes-de-força à liberdade de expressão que se abatem sobre o comum dos mortais, sob pena de se hipotecar a liberdade criativa (e, logo, o húmus das artes).
Não sabemos, nunca saberemos, se os limites à liberdade de expressão são diferentes para o comum dos cidadãos e para quem dá o seu contributo para as artes. Sabemos que manifestações artísticas há que teriam esbarrado na intolerância se os limites à liberdade de expressão não tivessem sido maleáveis em favor desses artistas. Não sabemos, não saberemos, se a um museu deve ser garantida uma liberdade de expressão que arroteia caminhos vedados ao comum dos cidadãos. Que mais não seja, como grito que acorde consciências. Ou se, ao contrário, sendo paradigma, à cultura se deve exigir o respeito escrupuloso, não maleável, da liberdade de expressão.
A metáfora do filme é o quadrado, a obra de arte: um fio de néon iluminado que delimita um quadrado esculpido no chão de paralelepípedos no átrio à frente do museu. E a sua mensagem: saltamos para dentro do quadrado e somos todos iguais. Todavia, o curador do museu acabou apanhado numa pessoal contradição, ao distribuir cartas ameaçadoras por todos os apartamentos de um prédio habitado por emigrantes, depois de saber que o telemóvel furtado foi localizado nesse prédio. Preconceito armadilhado, quando o pessoal sobressalto tocou o curador do museu. Depois de afastado do museu, calhou a demissão da sua boa consciência. Já não a podia resgatar, quando, em marcha-atrás, quis pedir desculpa ao rapaz migrante que não lhe perdoou por ter semeado a confusão na sua vida com a carta aleatória. O rapaz já não vivia naquele lugar.
O quadrado é uma ficção – como ficções são o dogma da igualdade e o valor da liberdade de expressão; ou então, neste quadrado, que é exíguo, não respiramos por sobrelotação.