15.9.17

O lenço do Gonçalo

Black Rebel Motorcycle Club, “Let the Day Begin”, in https://www.youtube.com/watch?v=mmtQwtcaqLM    
O Gonçalo era um monárquico à antiga. Tinha dezoito anos e vestia-se como os avós. Falava como os avós. Tinha uma queda para a História. Parecia uma enciclopédia ambulante quando era preciso convocar as memórias datadas nos compêndios da história pátria. Excitava-se quando evocava as gestas de antepassados que trouxeram a glória pátria ao mundo. Notava-se: era um nacionalista à moda antiga. Só não se confessava salazarista porque faltava a bravura (que admirava nos antepassados) para desafiar as convenções ditadas pelo politicamente correto. Além disso, o Gonçalo tinha ambições que não quadravam com a estultícia do radicalismo político.
Safava-se a devoção pelo “pretendente ao trono” (a quem chamava “sua alteza, o rei”, enquanto se desfazia em ostensiva genuflexão). Tinha modos, o Gonçalo, que nós, os que convivemos com ele um par de semanas (admitimos que o Gonçalo não aguentou mais tempo de javardice), não tínhamos – e não éramos propriamente mal-ajambrados em matéria de educação, nem nos dispúnhamos pelos broncos modos.
Era louça fina, o Gonçalo. Tão fina que, numa noite, fomos ungidos com um episódio memorável do Gonçalo. Alguns de nós tiveram a necessidade de libertar as toxinas acumuladas após uma noite de cerveja a mais. O Gonçalo, que não ingeria bebidas alcoólicas, sentiu a mesma necessidade. Estávamos naqueles preparos, na casa-de-banho do estabelecimento, uns vegetando pensamentos infecundos enquanto excretavam os restos da cerveja, outros concentrados na função para não ser a mesma culminada com um indesejado incidente, quando o Gonçalo, em terminando a função, puxou um lenço de mão que guardava no bolso superior do blazer e limpou o instrumento das derradeiras pingas de urina que tinha acabado de verter. Os que estavam próximos do Gonçalo foram testemunhas do ato e comentaram no final da noite, depois do Gonçalo se ter ausentado que a noite já ia adiantada e ele devia umas horas à cama.
Ficamos – como dizer? – perplexos. Um de nós jurou que o lenço que o Gonçalo usou para evitar a acumulação de indesejados resquícios de urina na roupa interior não era o mesmo lenço que as pessoas de bons pergaminhos transportam com o propósito de se assoarem e de limparem a boca após um espirro. Mal fora: era o que mais faltava o Gonçalo, rapaz de linhagem exemplar, confundir a serventia das duas funções e meter no nariz ou à boca o lenço que tinha usado para se desembaraçar dos restos subliminares da urina excretada.
Anos depois, lembrámos o episódio. Nenhum de nós voltou a ver o Gonçalo. Nenhum de nós voltou a coincidir com alguém que usava um lenço de mão para limpar o instrumento pingante. Ficámos sem saber (por ausência de amostra representativa) se era fetiche dos monárquicos.

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