28.8.17

O tempero do silêncio


Massive Attack, “Silent Spring”, in https://www.youtube.com/watch?v=wi-i8kYCFzI 
Dos corrimões gastos pelas mãos encardidas, o ciciar de um estorninho errante. Rompe o formulário do silêncio noturno. Condiz com o vernáculo que corta o pensamento na sua transversalidade: tempos da lavra destes, os das inquietações que dissipam o sono.
E, apesar de tudo, há no silêncio a ossatura dos sentidos, a sua formatura indelével. Parece que precisam de alguma ordenação. A humildade faz reconhecer que estão desemparelhados de bússola. O imperativo retiro contrasta com a presença de interiores vozes que se atropelam em frases contínuas. Postas num papel, essas frases seriam um todo logogrífico. Só servem para tornar mais densa a desordem interior.
O silêncio é o desafio maior. Não é fácil domar as vozes que murmuram pelos corredores interiores, jogando-se umas contra as outras no emparedado limite que é sua urdidura. Num exercício dilacerante, ele aperta partes do corpo para tomar a dor como parto legiferante do silêncio demandado. Pode ser que a mortificação interior seja método capaz. Sobressalta-se, contudo: não há fingimento que sirva para remediar outro assalto ao pensamento: assoberbado pela analogia embaraçosa com outros quinhentos onde as punições autoimpostas são vulgares, desvia-se do preceituado, considera-o hipótese deliberadamente excluída. O silêncio há de ser maré com outra tela como anteparo.
Será como a benevolência inaugurada pela primavera. No corte com a conjugação viperina da invernia, contra a sinfonia tonitruante dos ventos desenfreados e das trovoadas medonhas, o beneplácito do silêncio. Para, através dos meticulosos corredores interiores do silêncio, desfazer as palavras a nada, as palavras julgadas malditas, jogando as suas cinzas por cima do corpo cansado. À espera que o sono-enfim saiba domar as cinzas inanimadas, deixando lugar deserto às palavras destemperança que eram o ubíquo desassossegar contemplado de uma varanda involuntária. Sem as desbragadas palavras a desafeiçoar o pensamento, reinventando nos nós desatados do silêncio a pulsão sufragada em rostos primaveris. Não tanto pela doçura que encerram, mas pela alvura que confiam.
No rescaldo do silêncio, sobrada a folha em branco, ela espera pelas palavras que lhe emprestem forma.

Sem comentários: