14.8.17

A soldo da maior maré


LCD Soundsystem, “Call the Police”, in https://www.youtube.com/watch?v=zWKIWNJnlzI    
Aparentemente, prática corrente: as pessoas aceitavam a oferta maior. E ele, enquanto fazia o tirocínio sobre as “normas de boa convivência em sociedade” (que se esforçava por perceber a bondade, aceitando-as acriticamente), dispensava os avisos de uns apoderados de uma coisa nebulosa que os mesmos teimavam em chamar “moral”.
Os da sua laia, os que já tinham sido instruendos das baias do tirocínio por que ele passava, e os outros que coincidam na aprendizagem, levavam banhos de sabedoria sobre a forma contemporânea de ser e de como o pragmatismo era imperativo. Normalmente, ambos os preceitos acabavam por quadrar com o oportunismo. Era quando esbarravam de frente com os meirinhos da ética: a estes, era deplorável a curvatura da espinha dorsal, de tal maneira flexível que depressa se dizia uma coisa e o seu contrário, sem que o seu contrário fosse reconhecido enquanto tal. E mesmo que fosse; que não se tolerasse a intromissão de almas alheias nos meandros do pensamento próprio. Em vez da intrusão dos autoproclamados juízes da ética, deviam estes começar por olhar pelas suas entranhas – ou alguém se convencia que eram entidades de tal modo perfeitas que ninguém lhes podia assacar pequenos pecadilhos que fossem? Em jeito de auto congratulação pelos métodos modernos, os lentes desta prática sussurravam, em comentário à possibilidade de corrupção dos arautos da ética, sobre os telhados de vidro e o risco de ser o primeiro a atirar uma pedra.
Ponto da situação: os instrutores das “normas de boa convivência em sociedade” (versão pragmática, adaptada às vicissitudes hodiernas) terçavam argumentos uns a seguir aos outros para desvalorizar os predicamentos dos autoproclamados juízes da ética. Seriam oportunistas ao jurarem que a ética começa e acaba dentro de cada indivíduo – e sugere-se o oportunismo porque a petição de princípio convinha para dissolver o sufrágio dos moicanos da moralidade. De resto, os instruendos iam aprendendo: a decisão, quando tiver de ser aferida, que se incline para os lados de quem faz a melhor oferta. E aprendiam a calcular meticulosamente os prós e os contras das ofertas, pois nem sempre a oferta mais aliciante correspondia à melhor oferta.
Anos mais tarde (mais de vinte), percebeu o equívoco. Maldito tirocínio que lhe fornecera os esteios contaminados do pensamento. Talvez estivesse errado ao longo deste tempo todo, ao dar prevalência a demandas que, de outro modo, filtradas por um absoluto e objetivo juízo, seriam recusadas à partida. Talvez ainda fosse a tempo. Não queria mudar o mundo, não podia ter essa ambição. Tinha esses vinte e tal anos de ambígua probidade a arquear sobre o corpo, curvando-o talvez sem redenção. Não era a remissão do pretérito que queria obter. Era apenas a garantia que doravante tudo seria alinhavado pelas costuras antípodas do que lhe fora ensinado. A soldo, apenas, do que viesse com o clamor das veias.

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