8.8.17

A caravana dos penhorados


The Durutti Column, “Never Know”, in https://www.youtube.com/watch?v=c2GFGsFdURU    
Era com o peito transido, aberto aos apóstrofes do tempo, que erravam nas estradas sem gosto. Não se lhes via um sorriso, um esgar sequer diferente daquele rosto empedernido, como se o estado de alma fosse sempre o mesmo, imperturbável aos equinócios demandados, impassível às variações dos dias perpassados.
As pessoas fugiam da caravana. Pareciam malsãos maltrapilhos, afugentando as assim consideradas pessoas normais, com ênfase para as criancinhas que nem sequer podiam deitar o olhar na caravana, não fosse, em retribuição, um qualquer mau-olhado se deitar perenemente sobre elas. A condizer, os penhorados traziam andrajos sobre o corpo. Cabelos enriçados, sem penteado que se visse, nem com jeito para rimarem com as ondulações compostas pelo vento. Diziam, os que mais se aproximaram da caravana, que o odor era nauseabundo: uma mistura de maus cheiros corporais, roupas que precisavam de lavagem, comida putrefata, variados álcoois derramados sobre os restos que se acamavam em cima das carruagens já de si pútridas. A caravana era comandada por um ancião ainda vigoroso, pelo menos pela pose, dir-se-ia, aristocrática. Não passava de um jogo de adivinhações: por onde a caravana passava não havia histórias de interlocuções entre os locais e os nómadas da caravana. Não era possível certificar a ausência dessas histórias, pois as pessoas dos diferentes povoados não falavam sobre o assunto.
À primeira vista, a caravana parecia composta por umas três dezenas de pessoas. Pareciam retirados de um filme de horrores. Gente inestética, gente ferida, gente com muletas, ostentando os curativos pútridos, amálgama de sangue recesso e de sujidade irrecusável, gente silenciosa, gente ameaçadora. Era como se fossem ciganos, sem o serem por sangue. Uma tribo ambulante, andando de povoado em povoado, apenas como ponto de passagem.
Não se sabia quanto tempo levava a peregrinação. Não se sabia para aonde iam. Não se sabia quanto tempo ainda sobrava à demanda. Não se sabia se tinha havido deserções, ou se alguns membros tinham perecido (tal era a sua exterior fragilidade). Não se sabia nada. Mas também não interessava. Havia – como dizê-lo? – um sucedâneo de código de conduta entre os habitantes dos povoados e a caravana dos penhorados: a senha vital era a convivência pacífica. Ignoravam-se reciprocamente. Como se fosse um jogo de jogos e, no tabuleiro sem peças, os residentes dos povoados visitados e a caravana de penhorados não tomassem o risco de articularem uns com os outros.
Foi deste modo por anos a fio. Um dia, deixou de haver notícias sobre a caravana de penhorados. Ninguém sabia do seu paradeiro. Até hoje. Os mais desconfiados têm uma teoria: os penhorados abjuraram a sociopatia e recolheram-se nas virtudes da sociedade. Os ainda mais desconfiados têm a certeza (pouco credível, contudo) que os penhorados se mascararam de gente comum, infiltrando-se. Para corromperem a gente comum.

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