28.7.17

Revolução (não é dessas que estão a pensar)


The Gotobeds, “Cold Gold (LA’s Alright)”, in https://www.youtube.com/watch?v=sASkCmw_ZJ8    
Como a ira se serve às colheradas, daquelas colheres de impantes dimensões. Como essas doses de ira entram à força pelo corpo dentro, cavalgando no dorso da improfícua resistência que se esboça. Dizem: parece que o tempo é inútil quando no estaleiro dos sentimentos medra, contra a vontade do seu hospedeiro, a lança mortífera da ira. Seja permitida uma dissidência: o estado iracundo é uma consumição que não tem valimento. É a ira, nas suas imponentes colheradas a frio, que estorva a utilidade do tempo. Ou, por outras palavras: enquanto permanecer a ira, o sucedâneo de um estado comatoso, é pior do que uma hibernação: é uma traição à clepsidra particular que pauta o andamento do tempo, como se o tempo avançasse umas páginas do calendário a eito.
Dizem, também: todos os males têm remédio, mesmo os que à partida se julgam irremediáveis. É um dos paradigmas da impossibilidade dos impossíveis – metendo ao centro da rosa-dos-ventos o faraónico desejo da possibilidade de tudo (como critério). Por exemplo: combata-se o estado iracundo através de uma libertação do corpo. Mande-se o corpo para aquilo que seja concebido como um palco, mesmo que seja fora do habitat natural dos palcos; pode ser o quarto, a sala, um esconderijo qualquer, se imperar o pudor e o esconjurar dos demónios que tomaram a alma como colónia tiver de ficar restrito ao seu fautor.
Que o corpo salte para cima do palco. Que ensaie as coreografias mais inestéticas. Que o corpo seja deixado a um contorcionismo, dir-se-ia salutarmente sitiado por um êxtase demiúrgico. Desamarrem-se os estorvos que impeçam as convulsões necessárias para o corpo se desalinhar dos maus candeeiros da ira. Se for preciso alguma destruição, ela que seja avalizada pelos resultados esperados. Pode acontecer que a carne sofra ferimentos nos preparos em que o corpo se deita, à revelia da vontade que, por o ser, é domada e não quadra com o movimento lisérgico que se espera do corpo. Que seja rasgada a roupa. Que sejam desprezados livros que repousam na estante à espera da morte. Que seja desalfandegada a memória, cerzindo-a com a precisão milimétrica da memória seletiva, a teriaga para asfixiar a ira que medra.
O suor a rodos é o selo da libertação. O esgotamento das forças, a caução das forças de sentido oposto que levitam em sua renovação heurística. Nem que esteja tudo desarranjado e o palco que assim se ofereceu seja o sinal da decadência. São erráticas as conclusões que se espraiam no estirador impreparado: não é decadência, é reinvenção. A candeia necessária para sepultar a ira, que perece no pelotão de fuzilamento da revolução encenada no palco assim concebido.

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