3.7.17

Diametral


Teho Teardo & Blixa Bargeld, “Alone with the Moon”, in https://www.youtube.com/watch?v=DQhMiiHowCg    
Num repente, perdeu o temor da morte. No palco onde os atores haveriam de levar a peça à cena, um caixão aberto, centrípeto. Noutros tempos, nem sequer teria coragem de subir ao palco ao saber que estava dominado por um (assim entendido) demoníaco caixão. E, ainda por cima, aberto, como se desabrochasse em forma de convite malsão. Há alturas em que a meada deixa à mostra outros preparos. Aquele era o dia de esfrangalhar preconceitos. Subiria a palco. Indagaria de perto os limites do caixão. Para perceber os deslimites da vida, a delgada fronteira com a morte. Nem que fosse como metáfora primacial dos sentidos acolhidos na rosácea frondosa, para se devolver à expressão desarmada da existência ao tomar posse do rombo nos preconceitos.
Sondou o caixão. Primeiro, a medo. Deu conta que era apenas uma caixa aberta, almofadada com um tecido aveludado de vistosas cores.
(Talvez fosse imperativo desfazer a melancolia da morte, emprestando-lhe, neste que era o derradeiro leito destinado a um féretro, uma luminosidade que fermentava nas vistosas cores e no conforto do tecido aveludado. Não chegou a perceber se o conforto era destinado ao cadáver em espera ou aos familiares e à gente chegada.)
Num assomo de coragem, acomodou-se dentro do caixão. Deitou-se na posição de morto. As vistas eram iguais às que se tem quando a cama recolhe o corpo cansado em vésperas de sono; é a mesma horizontalidade. Possivelmente, a um morto não será dado apreciar a mesma paisagem, pois os cientistas produziram prova abundante que um morto fica desprovido de sentidos.
Adormeceu, sem dar conta. Foi agente passivo por dentro do labirinto de um sonho tentacular. Uma entidade prestigiada, intelectualmente sobredotada, com reputação incontestável, explicava o devir da morte através do sonho. Essa entidade afirmou: “assim que morremos, somos entregues nas mãos da lua”. Não há contacto entre cada corpo destinado ao refrigério da lua. A socialização não consta do vocabulário lunar.
Ficamos sozinhos na lua. Depois percebeu porquê. A lua generosa, infinita na previsão dos mortos que a ele se entregam, é o virtuoso lugar onde os paradoxos se entrecruzam. Ficamos sozinhos como sinal de castigo e de deleite. Como castigo, pois deixamos de fruir as pessoas que nos foram queridas. Ficamos sozinhos, porque na morte não nos é dada a prestimosa companhia dos que foram tutores do conforto da sua companhia. O tempo desta companhia esgotou o prazo de validade. Ao mesmo tempo, a solidão na lua desenvencilha um deleite impróprio durante a vida terrena: deixamos de aturar as pessoas insuportáveis que arpoam nas ilhargas.
Acordou num sobressalto. A crer na metáfora do sonho, não tinham lugar os temores da morte. Assim como assim, o caixão era irrelevante. Sempre dissera que queria ser cremado quando deixasse de ser participante no mundo dos vivos.

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