27.7.17

Castelos de vento


Yo La Tengo, “Autumn Sweater” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=X0XcNS6mfqA    
O gato enreda-se nas pernas, requisita carinho. Os olhos fundos, lavrados no rosto que convoca a vontade do homem, deixam a impressão momentânea de que o tempo se pode prender num retrato vivo. O gato não desiste enquanto o homem não o acarinha, deitando o corpo furiosamente contra a mão do homem, como se os mimos tivessem de se desprender de uma timorata medida. O gato dizendo: as coisas têm de ser feitas com o desembaraço da vontade, não podem ficar pela metade. O gato deixando entender: se as coisas ficam pela metade, mais vale não terem primórdio. O gato insinuando que ou nos metemos a fundo nas demandas, ou nem sequer tiramos delas partido, são-nos vazias.
Não adianta olhar para uma estante e julgar empilhadas as muitas proezas açambarcadas se delas sobrou uma ténue impressão, ou se delas fica no alpendre da memória apenas um leve sabor apesar da sua proximidade no tempo. Pois estantes com tanta fartura podem ser nada, ou apenas castelos de vento que se esboroam quando os elementos se congeminam para a calma, e o vento se ausenta. São aqueles castelos magníficos, sumptuosos, ilhas furtadas a um lugar cimeiro que se intui de atalaia sem intervalos, os castelos de vento que aparecem na visibilidade das leituras que passam na tela diante do olhar que pensa, do olhar que se torna imerso nas datadas lembranças. No torpor a preceito, as paisagens são um compasso de tempo intermediado pela aparente vontade que se soergue no dealbar da fantasia.
Se, por acaso, depois do sonho rarefeito, o sonho que alçou os alicerces e as paredes e as ameias do castelo de vento, as mãos mergulham no castelo, acham-no intangível. As mãos entram na carne funda que deviam ser as paredes, incorruptíveis como é o ofício dos castelos e da pedra espessa de que são feitos. Mas as mãos não encontram nada. Apenas sentem o vento que é a fuligem do castelo e ensaiam um movimento de captura. Deviam saber, as mãos desassisadas, que o vento não se agarra entre os dedos.
O gato insistente repete o miado e insinua-se entre as pernas do homem. O homem corresponde ao apelo. No doce trato dos afagos com que agracia o gato, o homem compreende que a função é recíproca. O gato refastela-se, como prova o extático ronronar e o olhar deleitado que atira ao homem. E o homem, ao sentir o pelo acetinado do gato nos afagos não recusados, aforra um inteligível agrado. O bem feito aos outros é medida do bem que sentimos percorrer nas veias aliviadas de um padecimento pretérito.
Afinal, os castelos de vento não têm serventia.

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