27.6.17

Os números contêm tudo (manual de numerologia – ou de como o esoterismo embacia o olhar)


The The, “We Can’t Stop What’s Coming”, in https://www.youtube.com/watch?v=oAudkj4U-H4    
- Dizes-me que os números são o sortilégio de tudo. Pedes para acreditar que um número traz um significado. É quase como se uma variedade de astrologia comandasse o tempo que está para vir e que nos limitamos a ser passageiros desse tempo, nós à mercê dos números que vierem aterrar às nossas mãos. Reféns de um acaso. De um numérico acaso.
- É um resumo razoável da numerologia. Por exemplo, se o primeiro número que vier aos teus olhos, depois da alvorada, for o (digamos) quatro, tens de o fazer corresponder à letra D, que remete para “diamante”. Terás um dia diamante, ou seja, será dia para tudo te correr de feição.
- Não será uma maneira estreita de ver as coisas? Vamos supor, por um momento, que admito (só para efeitos da pergunta que quero formular) a correspondência linear entre o número e uma letra que, julgo, se bem entendi, ser sua correspondência por ser a quarta letra do alfabeto. Não achas que estabelecer uma correspondência apenas a uma palavra começada por D afunila as hipóteses de vencimento da tua teoria?
- Há cânones que assim o estabelecem. Se for o quatro, remete para a quarta letra do alfabeto e essa é sinónimo de “diamante”.
- Mas podia ser “deserção”, ou “desespero”, ou “demissão”, ou “demoníaco”, só para evocar quatro palavras com conotação negativa que vêm à memória. Por que razão a palavra que corresponde à quarta letra do alfabeto, por sua vez correspondência necessária e indesmentível (pelos cânones do que acreditas) do número quatro, tem de obedecer a uma palavra que é imperativamente positiva? Não me digas que se apanhar um quatro logo a seguir a acordar é-me garantido, sem possibilidade do seu contrário, que terei um dia magnífico como magníficos são os diamantes.
- Digo outra vez: estes são os cânones da numerologia. Está convencionado. Ou aceitas, ou o melhor é ditares o teu afastamento em sinal de respeito por quem acredita.
- Não julgues que estou a exibir desrespeito pela tua crença...
- ... Isto não é uma crença. Está documentado; é científico...
- ... Perdoa-me, mas não aceito a cientificidade do que defendes. Se tenho o despertador todos os dias marcado para as sete horas e dois minutos, nunca terei a sorte de apanhar um quatro como primeiro digito do meu dia depois de ser resgatado ao sono. Tenho de me resignar à impossibilidade de não poder ter dias magníficos pela frente?
- Ainda não te disse o que significam o zero, o sete e o dois.
- Pois não, mas ainda estamos a braços com o quatro. Continuemos com o quatro, para dar conta da minha segunda objeção: se o quatro remete para D, que, por sua vez, é correspondente a “diamante”, temos de aceitar que haja pessoas que são indiferentes a um diamante. Nesse caso, o quatro (e o D que lhe corresponde) não é augúrio de nada que seja promitente de um dia capacitado por coisas apenas magníficas.
- Ora, estás a exagerar. Para toda a gente – vá, para a maioria das pessoas – um diamante é sinal de abastança que não se recusa.
- Estás a objetivar de mais. A possibilidade de haver exceções a esse comportamento é um óbice à numerologia. Terceira objeção: parece que só interessa o sentido linear que se obtém da correspondência entre um número e uma letra. E, todavia, se partir de um princípio de aceitação da numerologia (o que, já deves ter entendido, está longe de acontecer), não posso ignorar outras circunstâncias que podem embaciar a correspondência linear.
- O que pretendes demonstrar?
- Para além da estultícia da numerologia (salvo o devido respeito), um quatro pode ter diferentes significados consoante uma miríade de circunstâncias que marquem o agente cujos alvores são trespassados pelo quatro. Por exemplo: se está de chuva ou se está um dia soalheiro, não influencia a significação do quatro? Ou se o jantar anterior foi de carne ou de peixe? Ou se a noite foi domínio de pesadelos ou de sonhos, digamos, tributários de um certo prazer da vida? Ou se o dia anterior foi de degustação de prazeres culturais, ou apenas um dia de modorra, indistinto dos dias que são a maioria? Ou se houve álcool a transitar nas veias, ou foi um dia sem os sentidos obnubilados por agentes exteriores? A contagem das letras que correspondem aos números começa pela primeira letra do alfabeto; e não pode começar (em certas circunstâncias) pela última – ou por outra qualquer, por um qualquer critério? E por aí fora. A numerologia, para se embeber num módico de credibilidade, devia libertar-se das amarras de visões limitadas e sectárias em que se encerra.
- Depois de tão farta elucubração, não te apetece saber quais os significados atribuídos aos demais números?
- Não. Já entendi que para a numerologia só há dez números e a numeração termina em nove. Outra fonte de risibilidade, se me permites a opinião, com o obséquio de não a considerares uma ofensa pessoas às tuas crenças.

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