12.6.17

O sonhador furtivo


Sigur Rós, “Sæglópur”, in https://www.youtube.com/watch?v=TFHCWZh0_Co    
Bebemos aos mais altos sonhos, até àqueles de que desconfiamos da sua possibilidade. Mas metemos as munições no coldre, vertemos o vinho que se esgaça no cálice, olhamos para o céu em redor (como se nele demandássemos inspiração) e fazemo-nos alfaiates dos sonhos que nem sequer sonhávamos. Com as mãos, abrimos as nuvens fechadas até o sol indagar a serventia do esforço. Jogamos as fichas contra as probabilidades, que as apostas de triunfo certo são as imprestáveis.
À frente de uma parede branca, caiamos os seus poros com as palavras que se encontrarem à boca de cena. Como se fôssemos arquitetos da gramática e uma nova semântica desse ao cais, com uma riqueza insuperável. Seria como se inventássemos uma linguagem só nossa. Seria como se fosse possível sonhar estando acordado e pelo meio da lucidez ondas sucessivas de matéria onírica compusessem o horizonte por onde o pensamento transita. A certa altura, não saberíamos se estávamos imersos no sono ou se o sonho tão denso tomou conta do pensamento e a lucidez foi açambarcada pelo império dos sonhos. Concedemos: talvez se trate da última hipótese. Rasuramos a conclusão, deitando por terra a hesitação: é da última hipótese que se trata. Os sonhos não são toleram hesitações.
Por dentro dos sonhos convertidos, um aluvião de pensamentos indiferenciados chega às mãos. Não sabemos o que fazer com tantos pensamentos. Outros diriam ser uma tempestade cerebral – e celebrariam a tempestade cerebral como feito a reter na moldura da memória. Nós somos neutros. Não sabemos se, ao sermos sonhadores furtivos, nos convertemos intérpretes de uma tempestade cerebral. Nem nos interessa saber se há motivo para júbilo. Preferimos dar conta das asas de um pássaro que nos transporta, mostrando os lugares escondidos, os lugares nunca dantes demandados por gente, e que assim chegam ao nosso olhar. Somos levados no dorso do pássaro longânime, que é o sumo sacerdote do sonho. Mas não somos parte passiva no cadastro da sua vontade: temos as rédeas nas mãos e o pássaro obedece aos nossos comandos.
Mesmo assim, os sonhos habitam no exterior da vontade. Sulcamos os ventos destravados, arremetemos contra as tempestades iracundas, revolvemo-nos no pináculo do sol estival, ancoramos os sobressaltos na távola dos descontos e fazemos dos sonhos o fértil chão de onde cerzimos os tapetes que recebem os nossos pés. Furtivamente, como os sonhos em que nos deixamos levar.

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