7.6.17

O espelho almiscarado


Interpol, “My Desire”, in https://www.youtube.com/watch?v=692QlOQytTY    
Explicava à menina que os refúgios são como lagos desertos, um pedaço de água de onde desabrocha uma beleza singular e que, todavia, se resume a um estulto predicado dada a ausência de vida. Ela tinha de saber que há espelhos ardilosos que compõem uma imagem deformada da pessoa que estaciona diante deles. Se as pessoas não convivem com a opacidade desses espelhos, podem ser levadas à falsidade de si mesmas. Exemplificou:
Toma este espelho como paradigma do que quero dizer. Põe-te à frente dele. Gostas do que vês, não é? Podias jurar que te demoravas à frente do espelho, amaciando os cabelos longos que se deitam sobre os ombros, espreitando os vários ângulos do rosto, indagando um ou outro sinal que o povoam. Numa demora não controlada, mas tonificante. Se te aproximares do espelho, verás que ele dissimula outro espelho atrás dele. Só quando ficas junto do espelho é que consegues discernir a existência de um espelho mais atrás. É o filtro do primeiro espelho.
Não estranhes se a mão trespassar o espelho quando o queres tocar. É um espelho fictício. Não tem existência tangível. É um logro, dirás. Não te enganes ao cair na precipitação do juízo. Pode ser apenas um verniz que, com a proximidade, convoca a atenção para o espelho que verdadeiramente importa. Terás de franquear o primeiro espelho – que afinal não é um espelho. Colocas-te diante do espelho na retaguarda, ajuramentando-o à condição de tira-teimas.
Continuas a contemplar a imagem devolvida pelo espelho. Não tires outra conclusão apressada. Chega-te a esse espelho. Com a proximidade, verás que a tua imagem se deslaça até ficar um borrão indistinto, uma sombra que se confunde com a penumbra que vem de atacado talvez por absorveres a luz que dá vida a esse espelho. Pressentes que o espelho também é uma impostura. Contornas o espelho e reparas que um terceiro espelho ampara, à necessária distância, o espelho anterior. Repetes o procedimento. Repetes a ideia sobre a imagem retida pelos espelhos antecedentes. De cada vez que o teu corpo se junta ao vidro que dá corpo ao espelho, ficas inquieta: a tua imagem decai na dissolução, em diferentes modalidades. Deixas de ser tu. A imagem ampliada de ti não quadra com a ideia que dela julgas ter.
Após uma sucessão copiosa de espelhos, deparas com um espelho que traz perplexidade atrelada. Tem um vidro límpido, reproduzindo a imagem com uma nitidez singular. E, contudo, esse espelho não traduz a imagem de ti quando posas para ele; só vês o vazio por dentro da moldura do espelho. Como é possível? – perguntas, numa aflição compreensível. Este é o último espelho da sequência. Atrás dele, uma parede (ou um precipício, não estás segura). No avesso do espelho encontras um envelope lacrado. O frémito em que te consomes não resiste a saciar a curiosidade. Abres o envelope. Numa folha amarelada, em caligrafia escorreita, uma frase lapidar: “tu não existes.”
Amarrotas o papel, protestando a tua iracunda condição. Regressas à pose diante do espelho, só para contrariar o presságio contido no subscrito envelhecido. Mas a mensagem não estava gasta. Nessa altura percebes tudo: o que importa cevar a incessante autoestima à frente de um espelho se cada indivíduo é uma fração insignificante do todo?

Sem comentários: