13.6.17

Infância minada


Mogwai, “Coolverine”, in https://www.youtube.com/watch?v=8ZocDT3TmAE    

Um pai dizia à fila: “sabes? Os adultos são culpados pelo efémero da infância.” O rosto perplexo da menina exigia uma explicação. “Somos culpados, porque nós, os mais velhos, julgamos que é preciso que as crianças estejam protegidas do mundo exterior. Por isso é que vos colocamos dentro de uma cápsula que julgamos à prova de bala, ou seja, à prova do mundo e do que o mundo tem para oferecer de pior. Por isso é que julgamos que a infantilização é a alienação necessária, para vocês não darem de caras, e cedo de mais, com o mundo que será vosso covil mais tarde. Não somos grande ajuda. Não o somos quando queremos fazer de conta que o vosso mundo infantil é um lugar formoso, um autêntico conto de fadas – quando nem sequer há fadas e os contos que se contam são, muitas vezes, sobre coisa hediondas, sobre o triunfo da maldade, sobre os maus espíritos, sobre a desconfiança, sobre a adulteração dos significados, sobre a desonestidade, sobre aquilo que os mais puristas – e por aqui se vê não ser esse o meu caso – consideram ser uma entorse à ética. Depois, quando vocês crescem e o pensamento se liberta das amarras da puerilidade da infância, e quando começam a ler o mundo pela grelha mais lúcida que os vossos olhos permitem, insurgem-se contra quem não vos forneceu matéria-prima que servisse de introdução geral ao mundo. Nessa altura, custa-vos muito a desligar do idílio em que a infância foi vivida. Percebem como as coisas, todas as coisas, são uma imersão efémera. Como estão desiludidos com os mais velhos, que souberam ser apenas mestres na vossa impreparação, não confiam neles e não fazem as perguntas que podiam aplacar as dores de crescimento. Aprendem sozinhos a crescer com o mundo, o mundo pungente, que cresce às costas do vosso crescimento. Na melhor das hipóteses, organizam um condomínio onde aprendem a crescer uns com os outros. Percebem que não podem crescer mais do que o mundo que é a vossa casa imensa. Percebem que esse é um lugar que açambarca a espontaneidade que havia, em seu lugar medrando um contínuo cinismo que é o modo de se protegerem contra as aleivosias que vêm de fora. Sim, intuem que tudo é efémero. Há de chegar o momento em que a representação do efémero deixa de ser uma contrariedade. É quando percebem que as coisas têm um tempo próprio. Como foi o caso da infância que foi a vossa, como a incubadora onde não estavam à mercê do mundo implacável que depois aprenderam a ver.

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