Provisório

The Kinks, “Lola” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=l9B3LEqO-cc    

O faro polvilhado pela poeira que veio do crivo diligentemente usado: não se é se não uma imagem temporária do que se há de ser. O problema do postulado é que ele encerra a sua própria negação: pois se não se é se não uma imagem temporária do que se há de ser, quando chegar o momento prometido a efemeridade cuida de desmentir a previsão elaborada. É por essa razão que o postulado é de uma integridade inatacável. Resume, na sua essência, a mitomania genética.

Depois das vésperas incomensuráveis, quando uma certa anestesia parece ter tomado conta de tudo, o chão parece ter fugido debaixo dos pés ao som de um rugido incessante que grita na caverna do pensamento. Pergunta-se por que, ao sair-se da anestesia, um certo abalo telúrico acompanha o ruído manso das águas de um regato que se ouvira e ficara retido na memória. E a pergunta penteia o momento: como se pode ter como cais um axioma quando, por prever a mitomania incorrigível, ele é entronizado como se houvesse imperativos categóricos?

Tome-se como exemplo a dúvida metódica sobre a História. Recuemos aos tempos de cuja memória se inquire como chegaram vestígios ao conhecimento dos peritos. Há documentos e, antes deles, vestígios que corporizam formas documentais de então, que servem de lastro ao edificado da História. Se a ciência for resgatada aos seus primórdios, quando as descobertas vieram de braço dado com a original hermenêutica da História, não se pode conceber algum não intencional viés dos construtores da História? Assim sendo, o conhecimento que nos trazem da história pode estar contaminado pelas visões pessoais, tanto mais que os discípulos que se seguiram continuaram o ensinamento dos mestres.

A provisoriedade de tudo desmonta os dogmas que se apresentam como tal. Até que uma heterodoxia venha disputar os lugares estabelecidos e conteste que tudo é provisório, metendo numa regra de bronze certos determinismos que passam a ter a categoria de definitivos – sem dar conta da avareza intelectual que traz a negação dos seus pressupostos. O que só confirma a provisoriedade de tudo: as teorias de hoje, entretanto substituídas, perdem pergaminhos. Até que as teorias então entronizadas passem pelo mesmo processo de efemeridade que as deixa datadas.