11.5.17

Correio atrasado (40) (Epílogo)


Grizzly Bear, “Three Rings”, in https://www.youtube.com/watch?v=PZ8LB6KHHMs    
Com algum tempo de atraso, regressava a casa. De vez. O comboio engolia a paisagem, que passava pela janela numa mancha quase impercetível. Ainda não estava recomposto dos estouvados dias anteriores. Às vezes, sentia o pensamento a descarrilar. Umas sombras entrecortavam-se entre os laivos do que julgava ser lucidez. Era quando ideias bizarras, ininteligíveis, sem sentido, vinham a cena. Quando dava conta da alegoria logogrífica, asfixiava esses pensamentos com o que considerava ser o regresso do pensamento normal ao lugar centrípeto do palco. Talvez fosse dos exageros dos dias anteriores – apesar de não ter noção clara do que o terá levado aos exageros, pois as recordações desses dias eram difusas, como se esses dias tivessem acontecido há anos e procurasse resgatar as lembranças a custo.
A paisagem desfilava mais lenta: o comboio já atravessava terreno montanhoso, depois de abandonada a planície que trazia por companhia desde a cidade-capital. As montanhas eram o seu terreno preferido. Era o quadro que emoldurava a vila onde tinha casa. Começou a sentir a proximidade de casa. Pelas suas contas, o comboio não estava a mais de meia hora do destino. Recostou-se e pousou o cotovelo no parapeito da vidraça, deitando o olhar na paisagem que entrava pela janela da carruagem. Sem dúvida, aquela era a sua terra. Julgava não ser conclusão aprumada nesse sentido apenas para validar a decisão que tomara. Não era tempo de interrogações inquisitórias, nem de possíveis arrependimentos. Tinha de assumir, de uma vez por todas, os seus atos. Admitia que poucas vezes o conseguira no tempo pretérito, o que acabou por constituir caução de sucessivos pesares, de sucessivas angústias que marejaram a existência. Mesmo quando evocou uma passagem ainda relativamente recente da sua viagem (ao ter tomado consciência que era habitante do mundo e que o mundo por inteiro era a sua pátria), nem assim se demoveu do regresso a casa.
Saiu na estação de comboios. Dando cumprimento a uma das resoluções prometidas quando aterrou no aeroporto, encaminhou-se para o restaurante contíguo à estação. Ainda era cedo para o jantar, mas entrou no restaurante. A gerência mudou de mãos e até os empregados eram novos. Por sorte, a ementa não mudou. Podia saciar o apetite que teve vida nova assim que o roteiro da viagem o aproximou de casa. Pediu entradas várias, pão saloio, bochechas de porco estufadas com puré de grão de bico, vinho da casa e, para sobremesa, encharcada conventual. Não pediu café e pagou a conta, deixando uma gorjeta generosa (ao contrário do habitual).
Meteu-se ao caminho até casa. O caminho era fácil – para ajudar, não levava os haveres emalados. Naquela altura do ano, anoitece depois da hora do jantar. Ainda há pessoas na rua. A probabilidade de se cruzar com conhecidos era grande. Ele era o carteiro da terra, toda a gente o conhecia. Estranhamente, não havia vivalma nas ruas. Parecia que toda a gente tinha encontrado refúgio dentro de casa, talvez sabendo do regresso do carteiro. Ou então, dera-se um êxodo sem explicação e a vila estava deserta. A última vez que o lugar ficou quase sem gente coincidiu com uma visita do Papa. Lugar de religiosidade arreigada, os seus filhos diletos (o que não era o seu caso) viajaram até ao santuário onde a multidão prestou homenagem ao Papa.
A perplexidade continuou a crescer quando reparou que a estação dos correios já não era onde sempre fora. No lugar, estava um tapume escondendo obras em curso. O belo edifício dos correios tinha sido destruído. Um pouco à frente, encontrou as primeiras pessoas conhecidas (por esta ordem): o dono do talho, um vereador da câmara municipal, um taxista, uma velhinha viúva de longa data, um rapaz que andara consigo na escola e que agora era rececionista no hotel da vila, o dono de um restaurante. Passou por alguns no lado oposto do passeio, mas outros cruzaram-se com ele em sentido contrário, seguindo no mesmo lado da rua. Ninguém o conheceu. De cada vez, abrandou e esboçou um cumprimento, logo reprimido ao notar que as pessoas passavam por ele como se não existisse. Não atribuiu grande importância. Aquelas pessoas podiam estar distraídas. Ou podia apenas ter acontecido que não o tivessem reconhecido, agora que deixou crescer uma vistosa barba hipster.  
Entrou na rua onde morava. Subiu a rua e lembrou-se de todas as casas e de todos os seus habitantes. Ao chegar ao sítio onde se situava a sua casa, ficou boquiaberto: a casa era diferente. Era diferente na forma, era diferente nas cores, era diferente na disposição geográfica. Não era a sua casa. Não podia admitir que não se lembrasse como era a sua casa. Essa é uma memória insuscetível de obliteração. Sobressaltado, desceu a rua a caminho do centro da vila. Talvez houvesse mais gente na rua – gente que o conhecesse e contasse o que se passou com a sua casa.
Entrou num dos cafés mais populares da vila. De certeza que, àquela hora, estavam pessoas do seu conhecimento. O café estava quase vazio. Sentada numa cadeira ao fundo do café, a senhora que fora sua professora primária. A senhora punha as cartas na mesa, parecia cartomante. Se calhar, neste tempo que estivera ausente, a senhora professora decidiu mudar de vida e transfigurou-se numa cartomante. Só o respeito pela professora evitou que esboçasse um sorriso de desdém. (Sempre desprezara as coisas esotéricas que têm pretensões de ciência.) Aproximou-se, fazendo-se notar à professora (ou cartomante), que levou os óculos ao rosto para perceber quem era o cliente que vinha solicitar os seus serviços. Não o reconheceu, pois tratou-o por você e perguntou se queria que deitasse as cartas e qual a apoquentação que carregava às costas. O carteiro insistiu: “não me conhece, senhora professora?” A senhora, altivamente, retorquiu: “Professora?! Eu não sou professora. De onde tirou essa ideia?
O carteiro saiu do café, exasperado, deixando a professora (ou cartomante) a vociferar impropérios pela sua falta de educação, pois virou costas e deixou-a a falar sozinha. Já sabia qual seria o tira-teimas. Dirigiu-se a casa da menina quarentona de quem se dizia ser exímia no desamor – da menina que, também corria de boca em boca (e na perceção do carteiro), estar por ele apaixonada. Tocou à campainha e a menina quarentona abriu a porta. Fez um esgar próprio de quem estava perante um desconhecido. O carteiro ficou irascível:
- Não me conheces? Queres que eu acredite que não me conheces? Não é pela barba, decerto. Olha-me nos olhos, como costumavas fazer!
- Essa agora, quem é o senhor para me falar nesses modos à porta de minha casa? Ato contínuo, a menina quarentona bateu a porta, cerceando a conversa.
O carteiro percebeu tudo. Ele tinha história, mas não tinha passado. Ficara prisioneiro do palimpsesto do seu sonho. E já não sabia em qual dos sonhos medrava. Nunca mais deu conta do acordar.

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