25.5.17

As cicatrizes da solidão


Dead Can Dance, “Persephone”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ku1HJ2DI7Xk    
A empregada do balcão elogia a indumentária da mulher que pediu um café. A empregada, respeitosamente, trata a mulher por você. A mulher, com idade para ser mãe da empregada do balcão, trata-a por tu. Pode ser da diferença de idades. A empregada do balcão intromete-se com as razões para tamanho ajanotar: “anda mouro na costa...”, seguido de sorriso malandrim a condizer. A mulher responde sem demora: “nem penses nisso. Andei vinte e dois anos a aturar um bêbado. Achas que quero voltar ao mesmo?!
Pelo meio do diálogo, enquanto ia alinhavando a posição de narrador no enredo e tirava as medidas à história, ainda ouvi os lamentos da mulher e as perguntas da empregada de balcão, que queria seguir o fio à meada, ao bom jeito do sensacionalismo de uma certa impressa ávida de sangue (mas não de suor), tendo a mulher dito pelo menos três vezes que não faltou vontade para matar o bêbado. Nas entrelinhas ficou a noção de violência conjugal durante os vinte e dois anos.
 Causou impressão a mulher ter confessado (se a honestidade das palavras não lhe falhava) que preferia a solidão a ter de partilhar a vida com alguém. A solidão compensava o risco do seu contrário. Ficaram por fechar as cicatrizes dos vinte de dois anos a aturar um bêbado, porventura com repetidos episódios de violência. A mulher mostrava a imagem de um adágio popular que preconiza a solidão em detrimento das más companhias. As feridas traumatizaram-na. Terá fechado o cadeado do amor e deitou as chaves para as profundezas de um mar distante, com as preces congeminando correntes marítimas a desfavor da proximidade da chave (não fosse a mesma fundear numa praia qualquer nas proximidades – numa praia, eventualmente, onde a mulher encontre solário para a sua pele tisnada).
(Um narrador mais ousado cuidaria de especular sobre a tentacular teia da solidão da mulher. Cuidaria de atirar a jogo a antítese entre as palavras proclamadas e os sentidos sufocados na embocadura da voz, sopesando o desejo reprimido pelas cicatrizes ainda abertas. O narrador mais atrevido perguntaria se a mulher se reconhece nas cicatrizes da solidão, ou se ao arrenego de possível companhia não quadra a antinomia dos sentimentos dissolvidos no silêncio da sua reclusão.)
Tirando o tapete que admite especulações, o narrador observou como pode ser destrutivo o efeito que uma pessoa produz noutra. A exposição demorada e os laços duradouros, ao retirarem um módico de vontade e diluírem a fronteira entre o abuso e dignidade, podem trazer uma pessoa ao sedentarismo afetivo. Uma enfermidade não reconhecida.

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