26.4.17

Correio atrasado (29)


Sigur Rós, “Ekki Múk”, in https://www.youtube.com/watch?v=2cAxLZpelmQ    
Teria de abrir a escotilha aos atos suscetíveis de vaidade. Sabia que se desse corda às divagações, em jeito de evasão indeclinável, começaria a perorar sobre a ferrugem que acintosamente prendia a escotilha ao arnês, ou sobre os parafusos enxertados por um mecânico desastrado (uma sua outra personificação com propensão para o boicote quando o céu se despejava de nuvens) que obrigava ao uso de força sobre-humana para libertar as amarras da escotilha. Tinha de parar antes que medrasse no imponderável do detalhe sem significação visível.
A escotilha soltou-se. Não ofereceu resistência. Podia meter a cabeça numa atmosfera diferente. O ar respirado parecia mais leve. Dir-se-ia: do lado ocultado pela escotilha hermeticamente fechada não havia poluição sedimentada no alfobre do tempo. Tinha a impressão de se ter emancipado do ar tempestuoso e, do lado desembaciado da escotilha, ter redescoberto o significado de bonança. O olhar fixou-se no horizonte. Uma tela passava um filme e para o rodapé eram atirados fragmentos resgatados aos atos suscetíveis de orgulho.
Precisava deste bálsamo?” A interrogação depreendeu-se do movimento inusitado a que se dera, porque a catarse habitualmente prendia-se às nuvens plúmbeas que adejavam (e com iteração) sobre a conturbada cabeça. Não demorou a responder, com uma firmeza que seria impossível na véspera: sim, fazia sentido destronar do silêncio e do esquecimento os atos que podiam acender uma centelha de vaidade que daria outra iridescência à sua pessoa. Talvez fosse tempo do ensimesmar. Arrefeceu a chama que acendia este entusiasmo. Não podia, como era habitual, deixar-se dominar pelos braços do vetusto exagero. Esse sempre fora um dos males que o apoquentava.
Episódio número um: era adolescente e lembra-se de ter impedido um menino do afogamento certo numa piscina. A piscina estava quase sem gente. Ao contrário do que era habitual, naquele fim de tarde apeteceu um banho tardio. Nem fazia grande sentido, o banho tardio, pois a nortada era a mesma dos dias anteriores e a água estava fresca. Nadava sem pressa quando sentiu, atrás de si, azáfama e alguns gritos entaramelados com o borbulhar da água. Um menino debatia-se com a profundidade da piscina que não quadrava com a sua dimensão, em não sabendo nadar. Nadou três braçadas e chegou junto do rapaz, levantando-o com a força de um dos braços enquanto o outro mantinha o corpo à superfície. O menino, em apoplexia, tossicava a meias com o pânico, trepando para o seu pescoço, o que tornou pesada a tarefa do salvamento. O rapaz esperneava enquanto se debatia com um princípio de sufocação, tossindo golfadas de água para fora dos pulmões que iam parar ao seu pescoço.
Conseguiu acalmar o menino. A meio da piscina, estabilizou o corpo carregado com o menino. Nadou, a custo, até a conseguir ter pé outra vez. Subiu o rapaz para o parapeito da piscina e perguntou se estava bem. O rapaz acenou com a cabeça, sem conseguir falar. Levantou-se e fugiu a correr, tomado pela vergonha da ousadia que ia custando a vida, se o (futuro) carteiro em sabática não tivesse coincidido na piscina. Não estava ninguém a tomar conta do rapaz. E ninguém viu, desde as cadeiras reclinadas da piscina, ou das varandas dos apartamentos a ela contíguos, a sua proeza.
Ao jantar contou aos pais, derrotando a hesitação. Ninguém lhe deu atenção. Sentiu, até, algum escarnecimento nas perguntas feitas pelo pai (porventura de verificação da veracidade dos factos narrados). Só se arrependeu de ter contado que salvou o rapaz do afogamento. O resto não importava. Nem sequer a fuga apressada do rapaz que tirou dos braços da morte, sem ter tempo para esboçar um agradecimento. A devolução à vida não merece gratidão. Partiu do princípio que é um instinto inerente à condição humana. Estranhamente, sentiu-se mais contente por ter estendido a mão a um náufrago moribundo, do que ter retirado o rapaz dos braços hediondos da morte.
Episódio número dois: ainda rapaz com idade de escola primária, passeava nas imediações da escola com o colega de carteira. Ao dobrarem a esquina, deixando a avenida movimentada em direção de uma rua estreita e secundária, estava uma carteira perdida no chão. Ele apanhou a carteira e abriu-a. Estava repleta de notas. Tiraram as notas e contaram o pecúlio. Era muito dinheiro. (Ao contrário dos tempos de agora, as crianças de então já tinham uma noção da serventia do dinheiro.) Noutro compartimento da carteira estavam os documentos pessoais do portador. Era um homem um pouco calvo, com bigode raso e orelhas prominentes. Zombaram das orelhas. Ato contínuo, olharam um para o outro. Tinham à sua mercê uma fortuna. Podiam não contar aos pais e gastar o dinheiro em segredo, naquilo que as crianças de então gostariam de gastar caso tivessem em mão uma quantia tão grande. Olharam-se outra vez, em demorado silêncio. Começaram a perceber, pela duração do silêncio, que os propósitos materialistas não podiam ser consumados: “este dinheiro não nos pertence”, disse para o amigo, que anuiu: “tens razão. Deve fazer falta ao dono da carteira.
(Na sua ingenuidade, não lhes ocorreu – como ocorreria se alguns anos mais estivessem depostos nos seus corpos – que tantas notas amealhadas numa carteira podia ser sinal de dinheiro que se preparava para uma operação de branqueamento. Com aquela idade, só sabiam da existência de máquinas de lavar roupa e de lavar louça.)
Ele guardou a carteira em lugar seguro, dentro da mochila onde estavam os livros da escola. Foram à esquadra da polícia vizinha da escola. Narraram o acontecimento ao polícia que estava no balcão de atendimento. O polícia felicitou-os, guardou a carteira e prometeu que seria devolvida, e intacta, ao dono. Dias depois, a escola foi informada da proeza dos rapazes. Receberam uma comenda cada um em cerimónia a que assistiram todos os professores, alunos e funcionários da escola, na presença do homem que perdera a carteira, do chefe da polícia e do presidente da câmara.
(O presidente da câmara precipitou-se a tirar uma fotografia com os dois rapazes, fotografia que saiu na edição do dia seguinte do jornal local, o edil de sorriso rasgado como se a proeza tivesse sido sua, e os rapazes tímidos e assarapantados na presença de homem tão frenético).
Ainda ouviu um professor a comentar com o outro, no fim da cerimónia, enquanto olhava com atenção e vaidade para a medalha recebida: “pobres rapazes, nem sabem para que serve o dinheiro. Ai se fosse comigo, a esta altura a minha conta no banco estava muito gorda.
Episódio número três: pouco tinha passado dos vinte anos quando se apaixonou por uma rapariga. Sentia não lhe ser indiferente. Ela corava na sua presença e não conseguia reprimir olhares indiscretos. Mas suplicava para ele não investir, pois o namorado tinha feito o pedido de casamento há poucas semanas. Ele combateu-se, entrou em negação. E retirou-se, jurando que não queria voltar a ver a rapariga. Sentiu orgulho na recusa em assumir o que tomara conta de si.  Por respeito à rapariga. Nesse mesmo tempo, percebeu que começara aí o tirocínio nos efúgios sucessivos em que se especializou.
Deu por concluída a evasão pela escotilha. Preso, outra vez, às divagações estéreis, ao perceber que aquele episódio fora de vã glória, esqueceu-se de outros episódios com idêntica igualha. (Ou, talvez, já não houvesse mais para arregimentar).

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