13.4.17

Correio atrasado (20)


PJ Harvey, “Down By the Water”, in https://www.youtube.com/watch?v=lbq4G1TjKYg    
Estava hospedado perto do aeroporto. Julgou que ia ser difícil descansar nas horas previstas para o descanso. Os aviões aterravam e descolavam a toda a hora – aquele era um dos aeroportos mais movimentados. Habituou-se depressa. Não era o silvo tonitruante dos aviões, ora a aterrarem, ora a levantarem voo (dependendo dos ventos dominantes), que estorvava o sono quando era hora do sono. Teve a sorte de encontrar um lugar para viver que tinha janelas duplas, isolando o ruído que fazia lá fora – interiorizou, sem antes ter sabido que todas as casas em Vancouver eram feitas de janelas duplas. E não era para as pessoas não saberem do ruído exterior; era para não serem apoquentadas pelo frio que fazia no inverno.
Nesta noite, foi importunado por uma insónia. Já fazia algum tempo que as insónias não subiam à cena. Assim era desde as dúvidas existenciais que o assaltaram em Vladivostoque, na véspera da consulta com o perito em dores de alma, a que acabou por faltar. No cargueiro, nem as noites com mar tempestuoso foram suficientes para desassossegar o sono, tamanho o cansaço com que cada final de jornada era recebido. Esta era, pois, noite de insónia. Não cavou fundo para tentar saber de onde procedia a insónia. Mal percebeu que não conseguia encontrar explicação para a ausência do sono, dirigiu a atenção para alhures que pudesse ter mais peso.
O olhar debateu-se no trânsito de aviões. À frente dos olhos, conseguia ver o corredor aéreo destinado à aterragem dos aviões. Mandava o vento de feição que essa fosse a orientação decidida pelos controladores aéreos. O vento que não estava macio, a crer na coreografia da folhagem das árvores, que ondulavam ora num sentido, ora no outro. Parecia que, afinal de contas, não havia vento dominante. Estava errático. Os aviões ressentiam-se, com descidas bailarinas até à pista de aterragem, debatendo-se com a turbulência errática, com aterragens brutas, às vezes aterragens à segunda, pois os ventos desajeitados descompunham o avião e só com o segundo contacto com a pista a aterragem se consumava.
Um avião, em plena aproximação ao solo, hesitou e voltou a ganhar altura. Foi então que se lembrou de um amigo de longa data, admirador das coisas da aviação civil, lhe ter contado que os aviões às vezes “borregam” – e que borregar significa o abortar de uma aterragem porque os pilotos sentem que, no derradeiro instante, não é seguro pousar o avião. Apesar de se ter lembrado do detalhe técnico, os seus olhos empreenderam uma digressão metafórica pelo “borregar” do avião. Sondou, pela via láctea das possibilidades sem hipótese de escrutínio (porque do domínio da especulação se tratava), quantas vidas eram a imagem viva de um borregar de intenções.
À primeira vista, as hesitações que conduzem à inação pertencem ao legado das coisas inviáveis. Delas se pode dizer que resumem um malogro. Com a agravante do retrocesso, fator determinante do malogro, ser ditado no último momento antes da decisão final que deveria conduzir ao resultado esperado. Um avião a borregar, ou uma pessoa a, covardemente, retrair-se de uma intenção, são o espelho da derrota. Só contam as decisões que dão em ações. Um recuo é motivo de censura – de autocensura.
Admitiu, após algum demorado pensamento, que as coisas raras vezes são como aparecem em revelação à primeira vista. Teve de amadurecer a hermenêutica da metáfora do avião a “borregar”. O que lhe tinham ensinado, é que um avião não se faz à pista se não houver condições para aterrar em segurança. Se um piloto interrompe a aterragem, metendo os motores a fundo para ganhar a velocidade que as leis da física exigem para o avião voltar a ganhar altitude, é porque ajuíza que não pode arriscar a aterragem sob pena de ser carrasco dos passageiros embarcados. Quando um avião “borrega”, não se pode considerar que de uma inércia se trata. É ao contrário: a não decisão de colocar o avião no chão é a decisão de o salvar de uma possível aterragem catastrófica. É uma decisão. A mais ajuizada de todas, de acordo com o critério (timorato ou não) do piloto que comanda o avião, para não transformar a pista de aterragem num crematório de corpos.
A metáfora do avião a “borregar” era um retrato muito aproximado do que sentira ser o seu percurso de vida até àquele dia em Vancouver. Até a perceber por que “borregam” aviões e por que há gente que recua em vésperas de uma decisão. Com uma diferença de perspetiva: dantes, em retrospetiva, julgava-se um perito em aterragens adiadas. Agora, a lente usada caucionava uma outra dimensão das coisas em seu agitar pretérito. Se bem estimava no plano dos juízos as vezes em que tivera de “borregar”, não se arrependia uma única vez.
Deu um grande salto em frente no apalavrar das dúvidas sem resposta que o assoberbavam. A viagem empreendida começava a revelar seus frutos. Antes de cair no sono, ainda teve tempo para notar que já não se referia, nestas deambulações heurísticas, a “fuga”. A palavra “viagem”, em substituição de “fuga”, era peça do tremendo salto em frente que dera depois de uma noite a ver os aviões em aflitas aproximações à aterragem.

Sem comentários: