24.3.17

Correio atrasado (6)


Childish Gambino, “Redbone” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=ezbsbkqoRrs    
Era um lugar-comum na vida de muita gente: os sobressaltos julgavam-se erradicados (ou, pelo menos, anestesiados) com a intermediação do álcool, de drogas. Desde que experimentou o vodca e sentiu que o inverno já não o deixava enregelado como ao início, habituou-se. Todos os dias, várias vezes por dia, na companhia de más companhias (é assim que se diz, não é?). Tamanho era o desacerto que, quando deu conta, depois de cair em ressaca ao cabo de consecutivas embriaguezes, estava em Vladivostoque. Do outro lado da Ásia, com o olhar fixado no oceano Pacífico, no avesso deste mar já o continente americano. Mais uma vez, não soube como ali chegou.
(Soube uns tempos mais tarde, em conversa com um dos estroinas que o desencaminhou para a viagem clandestina no Expresso do Oriente: o parceiro de bebida servia à mesa no comboio e desafiou-o para a viagem. O carteiro em sabática não tinha de pagar bilhete e podia partilhar a camarata com o amigo de circunstância. Com a promessa suplementar de reabastecimentos contínuos de vodca. Não deu conta de a viagem passar. Quando despertou do torpor do álcool, estava em Vladivostoque. Ao menos, voltou a sentir temperatura amena.)
Tudo isto tinha de parar. Quando julgava estar a empreender a vagarosa viagem de regresso a casa, deu consigo nos antípodas. Ainda conservava umas poupanças que tinha de gerir com zelo. Talvez não chegassem para a viagem. Teria de arranjar uma ocupação que fosse preparo para o necessário aforro, afinal a caução que o separava do regresso a casa. Era a resolução nos momentos de sobriedade. O mal era quando a mão agarrava um copo de vodca e, um atrás do outro, despejava as contrariedades amealhadas no fundo de sucessivos copos vazados. Nesta altura, renegava tudo o que evocasse o tempo vivido na terra onde nasceu e trabalhava. Parecia endemoninhado, ou a terra onde tinha casa parecia ter sido tomada por um bando de demónios que o afugentavam para todo o sempre (pelo menos, enquanto estivesse etilizado).
Era imperativo resolver estes sobressaltos interiores, a descompensação contínua em que se achava. Convenceu-se que teria de se aconselhar junto de um perito em dores da alma. Haveria algum qualificado em Vladivostoque? E, em havendo, podiam esbater a barreira dos diferentes idiomas de que eram falantes? Começou a recolher informações. Encontrou um especialista que se formara na Austrália. Decerto falava inglês, o que tornaria a comunicação – e, afinal, o propósito do aconselhamento – inteligível.
No mesmo dia em que marcou consulta (a ocorrer dois dias depois), decidiu fazer uma cura de álcool. Era o prólogo do tratamento. O primeiro passo para defenestrar os fantasmas e derrotar a fuga errática que o vinha afundando na decadência.

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