31.3.17

Correio atrasado (11)


David Sylvian, “Silver Moon”, in https://www.youtube.com/watch?v=RC3q5eOO7R8    
Do lago ao albergue, era uma caminhada esticada. O lago era do lado contrário ao da entrada do parque mais próxima do albergue. Não havia mal. As pernas e os pés já não estavam a gritar dores, depois do período de descanso em frente ao lago, a apreciar a encenação da menina, da avó e dos gansos. A pergunta que subiu à boca de cena ganhara foros de permanência depois de se levantar do banco do jardim e empreender caminho em direção do albergue: seria pessoa diferente se tivesse sido pai? Teriam as angústias sido amalgamadas caso tivesse conhecido o gosto da paternidade? E, a pergunta que aparecia como pano de fundo a todas as demais, por mais que ele não admitisse: se ele e a consorte tivessem sido pais da mesma criança, ainda estariam juntos?
Custou-lhe perceber a permanência das interrogações. Que se lembre, nunca nutriu gosto por crianças recém-nascidas, nem atraía a ideia de ser tutor da educação de uma criança gerada com os seus genes. Olhava para alguns exemplos, na família e entre os amigos, e não era uma ideia que o motivasse. Fazia parte da sua frieza, esta indiferença pelas crianças dos outros, mesmo que os outros fossem pessoas muito próximas de si. Lembra-se que uma prima o chamou à pedra por só a ter visitado três semanas depois de ter dado à luz.
A ideia não fora falada nos primeiros anos do casamento. Era um não-assunto. Só mais tarde – nos derradeiros tempos em que viveu com a consorte – ela trouxe o assunto à colação. O senso comum diria que foi quando o seu relógio biológico deu notícias. Ele recusou as abordagens, interrompendo a conversa (nas poucas vezes que o assunto foi levantado) de forma abrupta, rude, marcando posição inequívoca. Nem os apelos dos pais, que queriam ser avós, o demoveram da recusa da paternidade. O solipsismo, a meias com um hedonismo que disfarçava a preguiça para lidar com as dores da paternidade, justificavam a intransigência no tema. Por uma prima da ex-consorte, soube, algum tempo depois desta ter fugido na companhia do vendedor ambulante de bugigangas, que ela estava grávida. A dor que ainda sentia passou por um alívio: ao menos, ela não o poderia acusar de não ter sido mãe. Não que este alívio interessasse para o caso, mas anotou-o para os devidos efeitos.
Voltou à dúvida que o assaltou. Por pouco tempo: era uma dúvida que exigia o contrafactual. Imaginar como as coisas teriam sido na impossibilidade de elas terem seguido esse curso (porque não foi o caso, pura e simplesmente) é de uma inutilidade confrangedora. Ele bem sabia que às vezes se deitava ao repertório de exercícios contrafactuais, como admite que tanta gente o faz. Admitia, também, que às vezes era só para matar o tempo, à falta de outras empreitadas excitantes (ou na falta de diligência para abraçar as que estavam em lista de espera). Outras vezes, era por julgar que a invenção de uma extensão da vida era precisa para adornar a vida que levava – como se esta fosse exígua para nela caber tudo aquilo que ele julgava ser. Nunca dera grande valor a estes exercícios que especulavam com a existência, como se a vida pudesse ser deitada num tabuleiro, em forma de jogo, e as peças devidamente manipuladas por ele, do exterior, sendo ele o beneficiado (ou o prejudicado, consoante os casos) do exercício lúdico.
Desta vez, com a dúvida virada para o que teria sido na hipótese da paternidade, por um momento julgou que ficaria refém do exercício especulativo. Conseguiu derrotar os ventos nesse sentido. Não fora pai. E não interessava saber se seria pessoa outra na eventualidade da paternidade.

30.3.17

Correio atrasado (10)


Nick Cave and the Bad Seeds, “I Need You”, in https://www.youtube.com/watch?v=BAMZYpZi_M4    
O tempo opressor. Não quadra com as urgências, que alastram na aparentemente infinita espessura do tempo, quando o tempo certo para essas urgências se demora, sem estar atrasado. Só faltava um dia. Um dia para ver se desfazia o nó górdio com a ajuda do perito em dores da alma. Um dia inteiro. Teria de pensar sobre o que fazer para procurar que o tempo até lá não fosse opressor. Sabia o que não podia fazer. Estava em condições de jurar que não ia descair para essas proibições. Mas não sabia o que podia fazer para meter o dia sobrante entre parêntesis.
Tinha de sair do albergue. Já chegava o tempo opressor em sua baioneta constante sobre o olhar. Ficar em casa mais tempo abria o flanco para as fragilidades. Como se costuma dizer, é preciso apanhar ar fresco para limpar as ideias. No caso dele, não era esse o propósito. Era só para fazer com que as rodas dentadas dos relógios fizessem o que lhes competia.
Saiu do albergue apenas sabendo dos lugares aonde não devia ir. Os lugares do vício, que podiam tresmalhar a cura cujo processo estava em andamento. Não longe do albergue, havia um parque público que se misturava com a floresta de tundra que era típica da região. Era dia da semana, não era provável que estivesse muita gente no parque. Já agora, antes que fosse embora de Vladivostoque (dava-o por adquirido), tinha de ir visitar o parque. Gostava de arvoredo e apreciava, em particular, os arranjos de quem concebia os jardins. Como o parque tinha uma área extensa, podia demorar-se e, ao mesmo tempo, enganar o tempo que naquele dia parecia ter ficado estático. De caminho, exercitava-se. A má vida dos últimos tempos instalou a preguiça e desleixou o corpo (não que no tempo pretérito tivesse cuidados com o preparo físico, bem entendido).
Após algum tempo de caminhada, sentia os músculos em combustão. Era a paga pela inatividade. Tinha de se sentar: o corpo pedia tréguas. Em frente a um dos lagos, havia uns bancos que se dispunham paralelos uns aos outros, na perpendicular do lago. Refastelou-se, em pose própria de quem estava exausto, atirando as pernas para a frente, quase paralelas ao chão, para aliviar o fervor que incomodava os pés. À sua frente, uma menina de tenra idade, talvez ainda sem idade para ir à escola, entretinha-se com os seixos espalhados no chão mesmo antes das águas adornarem a margem. Olhou em redor, só para confirmar se algum progenitor (ou um outro cuidador) tinha a menina de atalaia. Dois bancos à sua direita estava uma senhora com o olhar perdido no lago. Era a avó da menina. Uns gansos nadaram vagarosamente desde o lugar em que se encontravam até às imediações da menina. Julgou ser um movimento pavloviano dos gansos, habituados a alimento atirado desde as margens. A menina agitou-se, sem medo dos gansos que pareciam ter um olhar oportunista. A menina correu na direção da avó, despertando-a do torpor em que estava esquecida. Esbracejou na direção dos gansos e apontou para um saco que a avó tinha ao seu lado, jazendo no banco. Decerto seriam sobras (de pão, ou de outra coisa qualquer) para alimentar os gansos.
(De repente, ocorreu-lhe especular, em boicote do quadro bucólico que se havia posto diante dos seus olhos, que dentro do saco não estivessem mantimentos para os gansos, mas uma arma. Fechou os olhos e supôs a menina a envergar a arma – por mais improvável que isto fosse, atendendo ao peso da arma ser superior ao peso da menina – e a fazer pontaria para os gansos. Abriu os olhos. O seu amor pelos animais impedia de prosseguir a elucubração. A elucubração, a seu ver, doentia. Não soube de onde retirou tal especulação grotesca. Se calhar, a sua cabeça já tivera melhores dias. Ou, talvez ainda, os últimos tempos deram-lhe a conhecer uma têmpera desconhecida.)
Quando se desligou da especulação, já a menina atirava para os gansos, com a guarida próxima da avó (não fosse escorregar para a água lodosa), pedaços de algo que não conseguiu, àquela distância, precisar. A menina saltava de cada vez que a mão ia ao saco e vinha cheia das sobras preparadas pela avó. Ria-se, em riso largo e sonoro, quando os gansos mergulhavam o pescoço na água e debicavam o alimento. Um dos gansos, talvez o mais velho (e por isso, menos diligente no abocanhar dos mantimentos), impaciente por ser ultrapassado pelos parceiros, saiu da água e juntou-se à menina e à avó. A senhora deu um passo em frente, interpondo-se entre o animal e a neta, julgando que o ganso estava em preparos agressivos. Não era o caso. O ganso olhou para a menina com olhar de súplica. Queria a sua preferência, atendendo à incapacidade comparativa com os demais gansos. A menina soube afirmar sentido de justiça, desviando a atenção para o ganso que tinha próximo de si. Afagou-o, sob o protesto da avó. Recusou os cuidados da avó e continuou a afagar o ganso enquanto o alimentava, mostrando indiferença aos (porventura) jovens gansos que já estavam saciados. O ganso velho comeu e olhou para a menina. Tinha um olhar baço. A menina percebeu que o ganso era velho e, possivelmente, doente. Pela última vez, passou a mão pela cabeça do ganso, antes de o animal voltar a entrar na água. E ele, à distância, jurou que o ganso e a menina verteram uma pequena lágrima.
Não admitia estar piegas. Quem lhe apontava o dedo, censurava-o pelo desdém que mostrava perante as fragilidades do mundo, pela sua incapacidade de se comover com as coisas que comoviam as outras pessoas. Desviando o pesar sufocado, intuiu que talvez devesse ter sido pai.

29.3.17

Correio atrasado (9)


Nicolas Jaar, “No”, in https://www.youtube.com/watch?v=xw_aLIsEZhc    
O corpo desatado podia fazer o que apetecesse. Sem freios. Sem convenções. Mesmo sem saber com a antecedência de saber o que apeteceria. Era como se não houvesse limites, nem os das leis da física, para o corpo que deixara de estar estremunhado, letárgico num lençol que o envolvia em forma de atadura. Podia mergulhar nas águas profundas e, numa demorada apneia, passear pelas profundezas e regressar à superfície com o corpo seco. Podia estar dias a fio sem cair no sono. Podia voar sem a atalaia de deuses, mesmo na ausência de asas. Era como se passasse a ser deus em pessoa própria. Sempre aprendeu que deus tudo consegue.
Nestes preparos, encontrou-se no fundo do mar, onde a profundeza já era tanta que rareava a luz do sol, onde as águas já eram frias a ponto da hipotermia. Observou os peixes, a cadeia alimentar, os corais que assentavam na areia fina e escura – tão escura que dava para entender que não estava longe de um vulcão submerso. Confirmou a existência de sereias: nesta demanda, cruzou-se com cinco diferentes sereias. (Confirmou serem diferentes as sereias, pois as caudas tinham cores diferentes, o mesmo sucedendo com os seus cabelos – a menos que tudo não passasse de uma ilusão de ótica, ou que as sereias fossem a personificação de entidades malévolas que se insinuavam junto dele, com propósitos inconfessáveis de onde resultaria grave dano para si.) Ao início, esboçou uma aproximação. Recuou. Não queria saber o que as sereias tinham para contar. De certeza que era um ardil. Não podia ser vítima da ingenuidade, ou da soberba. Mais valia acionar a desconfiança metódica. Ao menos, extrair-se-ia do mar com a certeza de que as sereias existem. O mesmo não podia dizer de deus.
Também encontrou uma nau antiga naufragada. Deambulou pelas suas entranhas abandonadas, em ruínas. Havia pedaços de madeira que se estilhaçavam mal pousava os pés, mesmo que o gesto fosse suave e os pés não assentassem com a força toda. Dizem as lendas que as embarcações naufragadas escondem tesouros. Ou fantasmas. Ou fantasmas que zelam pelos tesouros sepultados. Não deu grande crédito às lendas. Avançou sem medo pelo interior da nau. Também não viu esqueletos – outro presságio anotado nas lendas. Sem querer, trespassou com os pés um suporte do mastro que ainda estava, por milagre, intacto, impassível à erosão. O mastro perdeu a sua sumptuosidade e esfrangalhou-se em cima do convés, que, por sua vez, abateu com fragor. Por pouco, não foi atingido pelos destroços e pela nuvem de pó que sobejou do incidente. Preferiu deixar o lugar, não fossem ocorrer males maiores.
De repente, uma das sereias nadou em círculos, cercando-o. Não percebia se a atitude era amistosa, ou se era prenúncio de um ataque. Não demorou a perceber as intenções. O olhar enfurecido da sereia, o seu rabear contundente, eram sinal das intenções. Ficou parado no mesmo lugar, à espera de ver o que ia acontecer. A sereia lançou uns dardos flamejantes que explodiam ao contacto com a areia. Não sabia se ela não acertava por desmazelo, ou se era de propósito. As outras quatro sereias juntaram-se ao cerco, com a mesma atitude iracunda e inamistosa. Continuou paralisado, como se algo impedisse os movimentos – queria fugir, mas não era capaz. Estava à mercê das sereias. Já ajoelhado, enquanto elas adejavam sobre a sua cabeça tombada, prolongando a humilhação, à espera da estocada final.
Acordou em sobressalto, os lençóis encharcados em suor. Era só um pesadelo. Tinha de o contar no dia seguinte, quando fosse ao consultório do perito em dores da alma. Uma dupla interrogação subiu à boca de cena: estaria transformado num misógino? E, afinal, deus existiria? (Pois talvez tivesse sido ele a salvá-lo do tonitruante pesadelo.)