17.2.17

Objetos desejados


Tim Buckley, “Song to the Siren”, in https://www.youtube.com/watch?v=vMTEtDBHGY4    
Quando vou de manhã para o ginásio, o caminho leva-me a percorrer uma rua onde está um stand da Porsche. Não há dia que não abrande, desviando o olhar para a esquerda, para apreciar o contingente estacionado no stand. E aprecio. Às vezes, por uns momentos (enquanto o pensamento não é requisitado para outros fins), sonho com a abastança material que fosse a caução para conduzir todos os dias um Porsche.
Ao que alguns tutores da “decência”, confrontados com tamanha frivolidade (mesmo sem saberem o que me motivaria a ser penhor de tal sonho – o que não é desprezível), e outros amanhados num fundamentalismo ecológico (porque um Porsche tem motor potente e, portanto, guloso no consumo de combustível, sendo um veículo com elevado potencial negativo para o ambiente), depressa se perfilariam de censura em riste. Os segundos, pelas considerações ambientais, às quais é provável estarem ligados preconceitos de ordem ideológica e filosófica (uma certa candura ambientalista, de algum modo um lirismo que não se desprende de uma posição assertiva contra a leviandade do consumo e da adulação de marcas que apenas contribui para engrossar os lucros de grandes conglomerados empresariais). Os primeiros, não prescindindo de fazer julgamentos dos outros quando transitam por atos lesivos dos padrões morais de que se dizem testas-de-ferro, não hesitando no açoite ao mais alto nível, pois não é tolerável que as pessoas continuem enfeitiçadas por meros objetos que são ardis na satisfação de desejos de quem os compra (ou gostaria de comprar). Protestam, estes arautos da “boa moral”, que as pessoas perdem a sua essencialidade ao caírem no logro dos objetos de desejo. Transfiguram-se no palco onde os juízos pessoais se confundem e as pessoas são armadilhadas para substituírem valores por objetos, sendo vítimas de uma terrível materialização.
Já ouvi e li argumentos de semelhante igualha. E continuo a sonhar com a compra de um Porsche de cada vez que passo ao lado do stand a caminho do ginásio. Porque não julgo as preferências dos outros, nem lhes imputo juízos de valor, é-me indiferente o que tais curadores da “boa sociedade” possam dizer. Se for gratificação bastante acusarem-me de superficialidade por um Porsche fazer parte da minha dimensão onírica, não me custa a fazer-lhes o favor. É uma incorrigível fragilidade que me percorre por dentro. O que julgam não tem relevância. Apenas contam os (meus) mecanismos interiores que conduzem à afirmação de interesses, preferências, gostos, de uma estética, da identidade que seja a minha. Sem a usura de ter de explicar as preferências pelos objetos desejados, pois não confiro legitimidade a esses julgadores putativos.
Até lá, continuo a sonhar que haverei de ter as chaves de um Porsche na mão (ó maldito pecadilho!).

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