12.12.16

Biométrica

P. J. Harvey, “The Ministry of Defence” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Xtz2q1Rfgbk    
Os defeitos de que te acusas são o reverso das qualidades de que te orgulhas”, Agostinho da Silva, in “Espólio”.
A maldita condição humana: não podemos ambicionar a perfeição. Um rol de defeitos sobressalta a existência, quando não se toleram pessoais fragilidades. O sono embotado, os atos arrependidos, as decisões que oxalá não tivessem sido tomadas, palavras que não deviam ter assomado à boca – eis um rol de adversidades que perturbam dias inteiros.
Por dever de exigência interior, tudo devia ser perfeito. Logo chegam os emissários das limitações da condição humana, advertindo que a perfeição não é possível. Podiam, ao menos, dizê-lo com indulgência, recordando que somos profundamente eivados de defeitos e que os defeitos são condição inata da humanidade. Mas não é desse modo que a advertência é feita. Acentuam a ignomínia dos defeitos. Como se fosse preciso recordar que não nos é possível achegar ao beiral da perfeição, tantos os defeitos que se confundem com pecadilhos de que somos acusados.
Ato contínuo, embebe-se o espírito negativo que campeia e fazemos nossos os maus predicamentos da alma de que nos acusam: somos os primeiros – e os piores – juízes de nós mesmos. Não aceitamos os defeitos. Tecemos, com intensa gravidade, o libelo acusatório que é braço armado dos defeitos que hipotecam o sono. Parece má consciência. Há imperfeições superiores à vontade de quem as traz a tiracolo, como há imperfeições que desabrocham (e depois prosperam) com os atos volitivos dos seus fautores. Talvez o primeiro caso não chegue a encher um parágrafo nas páginas negras que submetem a consciência a um julgamento inexorável. Talvez o segundo seja caso para encher páginas a eito, debruando-as com a penumbra que, nem ela, consegue ocultar a vergonha.
No meio de tantas páginas, as qualidades podem permanecer num limbo, anestesiadas numa hibernação duradoura. Esquecemo-nos que também somos matéria elogiável. Esquecemo-nos que uma singela qualidade pode chegar para aplacar as dores causadas pelo reconhecimento de todos os demais contratempos que transtornam o interior. No sargaço das páginas adulteradas pelos sentimentos confusos, a páginas tantas já não é possível saber se nos acusamos das qualidades (desse modo) inúteis e se nos orgulhamos dos defeitos incorrigíveis, que, por o serem, não são achados como tal.

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