17.11.16

Um Zorro

Nicolas Jaar, “El Bandido”, in https://www.youtube.com/watch?v=VWR41_H-zy4
Que cabalística era esta de um mundo tão iníquo e com tanta gente indiferente às iniquidades que agrediam os sentimentos genuínos? Podia ser uma cabala de demónios que se insinuam entre gente comum, eles próprios disfarçados de gente comum. Como era possível poucos notarem as injustiças que devolviam à miséria numerosa gente sem que ninguém levantasse um dedo (primeiro, para denunciar tanta miséria; ato contínuo, para meter mãos à obra e mover vontades diligentes a favor da correção das iniquidades)?
As injustiças indispunham. Tiravam-lhe o sono: eram horas e horas de insónias povoadas pelas imagens de excruciante miséria em que tropeçava todos os dias quando percorria as ruas da cidade. Já não aguentava mais. Tinha de desencravar a inércia que dava caução à indiferença. Tinha de ser Zorro numa terra de ignóbeis egoístas apenas interessados em proverem o sustento individual, incapazes de desviarem o olhar um palmo ao lado para despromoverem a pobreza militante a aprazado antagonismo das almas sãs. Vestiria a capa de um Zorro que haveria de começar por convencer os endinheirados a darem o seu quinhão para corrigir as gritantes diferenças entre os que muito tinham e os que medravam na carência de quase tudo. Convencê-los-ia a bem. Ou a mal, se preciso fosse. Começaria por tentar a assertividade dos argumentos lineares. Caso os endinheirados teimassem no autismo, usaria a força bruta.
Trataria de empregar as credenciais de um Zorro inamovível à indiferença dos privilegiados. Cuidaria, depois, de distribuir o pecúlio pelos necessitados. Sabendo que se deitaria num sono apaziguado e que não seria incomodado pelas possíveis dores de consciência consecutivas aos saques sobre os endinheirados relutantes em serem convencidos pela sua retórica assertiva. Acordaria de barriga cheia, sabendo que no dia pretérito tinha tirado algumas pessoas da miséria (pelo menos temporariamente). Sem medo de outras consequências: convencido dos poderes sobrenaturais, inerentes à indumentária de Zorro que metia no corpo, não se sobressaltava com as milícias contratadas pelos privilegiados com o propósito de lhe darem caça e de protegerem os haveres que não se dispunham a partilhar.
Um dia, alguém lhe perguntou: és Zorro porque espontaneamente te insurges contra as misérias que consomem a dignidade dos miseráveis, ou apenas porque as iniquidades te locupletavam o sono?

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