27.10.16

Um brinde


Lower Dens, “Maneater”, in https://www.youtube.com/watch?v=pDDwljn-OEY
Ter nas mãos o sal intenso que perfuma o ar dessa forma puro. Deixar vir ao olhar apenas os lugares serenos que desipotecam o tempo algoz, que dessa forma recupera lucidez. Marejar as palavras com gotas de ouro vertidas na chuva temporã. Deixar o tempo ser o que é, até o verão extemporâneo teimosamente metediço no tempo do outono. Beber o sumo de romãs que avivam o outono. Edificar um trono onde não há lugar à presunção dos tronos, mas apenas um observatório para as coisas que interessa decantar. Beber um copo de vinho ao entardecer na companhia da pessoa certa. Sorrir com os dentes todos à mostra, como quem prova não temer embaraços que não existem nem por intermédio de fantasmas diligentemente povoando o sótão do pensamento. Ouvir os violinos, enquanto os olhos fechados viajam por paisagens idílicas. Não esquecer a cortesia quando um desconhecido aparece no caminho com uma interpelação. Desenhar no céu claro um poema espontaneamente gerado, o dedo indicador a fazer as vezes de caneta. Gastar os passos num caminho silvestre, entre as veredas escondidas por arvoredo dessa forma desmatado e o caudal do rio selvagem que sussurra no vale. Saber que há um largo mar onde o pensamento pode descansar, retomando as linhas mestras entretanto desmaiadas. Meter o corpo pela noite fora na companhia da insónia, ficar embebido no bulício a preceito, descaindo nos vícios que são sua rima. Contar os anos todos e perceber que não foram se não um breve pecúlio do que ainda falta usar. Perceber que as dúvidas metódicas são um compasso feito para abraçar o mundo com a força toda. Não deixar as palavras para trás. Suplantar os medos e os preconceitos e os sobressaltos (os que foram e os que se adivinham) numa sofreguidão que não deixa intacto nenhum minuto que vem ao regaço. Limpar o orvalho que embacia a janela e sentir as cores e os cheiros lá fora, deixando o peito aberto para ser a inteireza que se ambiciona. E erguer, num movimento firme e sentido, o copo cheio de vinho, brindando por tudo isto e por tudo o mais que venha a ser.

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