28.10.16

Fortuna


Lou Reed & Antony Hagerty, “Perfect Day” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=RXw3RiMnS3M
Uma porção de terra húmida apanhada entre as mãos. Um módico de alimento, só para trocar as voltas à fome. Um pequeno gesto de afeto, para contrariar o desamor. Perceber a identidade. Juntar os fragmentos que juram o pretérito e povoar o tempo vindouro com as lições que deixaram cicatrizes à flor da pele. Desconfiar dos lautos fazedores de si mesmos e da sua maquinação egocêntrica. Fazer de conta que essas pessoas não existem – ou, pelo menos, dar por certo que não contam para as contas que interessam. Apreciar as conversas que fluem entre o vento. Admirar as constelações de nuvens que adornam o céu. Saber que há sempre alguém a quem dizer “bom dia”. Dar o devido desconto aos patriarcas da maldade, sem esquecer que a eles não devem obedecer capitulações. Desembaciar um vidro fosco que impedia o olhar de ter medida sobre um lado oculto, dantes ignorado; e intuir as novas possibilidades franqueadas pelo lado que deixou de ser oculto. Conceber um novo mundo táctil, despovoados os preconceitos que perdem as suas fartas camadas. Experimentar as palavras que não eram assíduas no vocabulário, tê-las como auspiciosas. Estender a mão, quando for preciso, quando apetecer. Entronizar a vontade como estimativa acertada das probabilidades. Visitar o mundo, apreciar a sua variedade, o seu esplendor. Desatar o rosto roubado pela desconfiança, devolvê-lo à cortesia metódica. Saber que não há coisas que não possam ser aprendidas. Ensaiar desenhos singulares sobre as diferentes janelas que se entrecruzam. Hesitar, quando a vontade adverte que não há um módico de certeza; e, outras vezes, atirar o corpo de frente para o desconhecido, numa aventura de que se não sabe a finitude. Evitar os contágios do que se evita. Saber travar as importunações adestradas. Ensimesmar, se preciso for – nem que seja como refúgio contra as importunações que merecem ser barradas à porta do pensamento. E admirar toda a fortuna que se espraia aos pés, como dádiva de que somos maiores fautores.

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