31.10.16

Daqui, levo o vento

Dead Combo, “Putos a Roubar Maçãs”, in https://www.youtube.com/watch?v=SSIEIcgjCJE
De um lugar madrasto, de onde sobejam memórias mortiças que não interessa avivar. Dele, não quero levar nada comigo, a não ser o vento. E, todavia, é um lugar luminoso, de onde irradia um sorriso inspirador, com as suas colinas sucessivas desafeiçoando a rotina, os emproados jardins que convidam ao repouso, um lugar onde a luz viceja mais nítida, onde o rio abre os braços como se ele se despojasse a contemplar o lugar quando nele fundeia.
Não levo nada deste lugar. A não ser o vento que me enche as mãos quando sei que deste lugar me ausento. Uma pulsão indomável lança o pensamento contra o lugar, como se o renegasse. O lugar não merece. Às vezes, somos a irremediável solução que hipoteca um lugar. Quem não se inibe de regressar ao lugar que ficou hipotecado pela desdita?
Por isso, prefiro levar o vento que trago desta cidade. O vento é imaterial. Assim não vejo a cidade através dos poros do vento que a deixa sitiada e do cerco que me deixa sem sangue. Não sinto as pedras irregulares da calçada, nem o calor que abraseia o corpo, nem as largas avenidas que emprestam um naco de Europa à cidade. Quero apenas saber que este lugar existe. E que ele não me titula, nem se congemina habitação. Talvez cometa uma tremenda injustiça. Ao lugar não cabe a culpa. As imensas e singulares belezas deveriam bastar para lhe subtrair os fragmentos de fealdade. Estes (há que dizê-lo) gravitam na minha órbita. O problema não é o do lugar com tantos sortilégios. Não consigo remediar os rostos feios do lugar quando dele precisei. Não consigo esquecer.
Porventura, o lugar merecia perdão. Não sendo asceta, e sendo refém das sinuosas estradas por se entretecem as memórias, não me foram conferidas as faculdades do perdão. Quem mais perde com a troca, sou eu. A cidade continua a ter o vento, e o resto, indiferente aos predicamentos irrelevantes. Talvez um dia, depois de esquecer entre os dedos a cor do vento que trago da cidade, saiba senti-la como dantes. Como merece ser sentida.

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