23.9.16

Tropeçava nos próprios pés

Car Seat Headrest, “Something Soon”, in https://www.youtube.com/watch?v=WjnEkJa2Law
A exígua rua onde o corpo não cabia, debaixo das luzes desmaiadas que antecipavam a madrugada. Sozinho. Era cedo. Mas podia ser tarde – tudo dependia de saber se o sono tivera seu lugar ou se fora contumaz. Não se lembrava.
Olhava para os pés e julgava não ter corpo para os suportar. Era como se sentisse por dentro de um corpo sem as devidas proporções. A explicação encontrada para o instável equilíbrio que o atormentava. Não entregava as flores súbitas aos dias futuros: não sabia o que eram os dias futuros, e do passado vinham sombras que desembainhavam os enganos em que medrava. Não cedia a chave aos zeladores de promessas. Desconfiava.
Imerso em pensamentos, vagueava. Não se lembrava das ruas recentes por onde passara. Não se lembrava se, apesar da hora ser imprópria para as pessoas virem para a rua, outros intercetaram a sua errância. Mas o que interessava o mapa pretérito se, para o caso, o tracejado representativo do caminhado pelos pés era irrelevante? À frente, uma escadaria íngreme. Pela direita, uma rua que descia suavemente a colina com o jardim de anteparo, desaguando no rio (àquela hora) chão. Meteu pela escadaria. Não era a canseira que o demovia da escadaria. Tantos anos a viver na cidade e nunca arremeteu pela escadaria até ao topo alcantilado – ao menos, que houvesse uma serventia na deambulação sem sentido e ficasse a conhecer um miradouro de que nem sequer ouvira falar.
Ao menos, seria espetador privilegiado do lesto irromper do sol. Assim como assim, os poetas celebram a alvorada em palavras inspiradas. Podia ser que a alvorada fosse um arrebatamento necessário, como se um lampejo de luz em contraste com a escuridão deposta tivesse o condão de derrotar as sombras que adejavam sobre o olhar. As esperanças não colhem doenças insuperáveis; são, na pior das hipóteses, um maná das desilusões. Há males maiores.
Podia ser que dali procedesse uma súbita inspiração para rever a fundura dos bolsos de onde as mãos trazem a consistência da vida. Podia ser que achasse o segredo para deixar de tropeçar nos próprios pés – a única especialidade em que se distinguiu por todos estes anos de intoxicada existência.

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