27.9.16

O osso sem dor

Mão Morta & Remix Ensemble, “Pássaros a esvoaçar”, in https://www.youtube.com/watch?v=5o23BGgUnA4
No osso não magoa. No osso duro, por duro ser, as dores são fundas e não falam à flor da pele, onde tudo tem a sensibilidade de uma frágil borboleta. Mas não no osso duro. É fundo, longe do alcance dos punhais que desfeiteiam a cunha perfeita dada a apreciar num certo momento. O punhal remexe a carne, sangra-a. Sem chegar ao osso, o punhal é inofensivo. As dores estão apalavradas quando a arma arremessada por dentro do corpo consegue chegar ao osso. As dores excruciantes. Que as outras deixaram de ter importância. As demais dores foram apensadas à gólgota onde se abre a janela da anestesia. A aprendizagem cuida do resto. Cuida das crostas à volta do osso, mesmo que dantes o osso não tenha estado vulnerável aos punhais descerrados.
O corpo cobre-se de uma mortalha, talvez utópica, talvez apenas uma miragem. Porventura, o acaso imperativo que transfigura as possíveis dores em jogos habituais, lavando o rosto as lágrimas que não chegam a subir à superfície. Por mais voltas que sejam dadas, por mais intempéries descarregando iras que não querem ser órfãs, os punhais que lhes dariam vencimento são inofensivos. Com a carga imponente das cicatrizes que dão guarida aos ossos, sabendo que os ossos não podem ser amordaçados pelos rituais malsãos – sabendo que deles não podem os punhais ardilosos retirar nem um grama de substância.
A vontade imperativa sobrepõe-se. Vence as vontades opostas que intuem malefícios com o ónus de serem gratuitos malefícios destinados a semear a desdita. Nesta altura, os ossos, de tão calejados, ostentam uma espessura indestrutível. Nem que punhais ainda mais fundos consigam meter-se no mais fundo da carne, chegando ao osso, o osso, de tão adestrado, não cede.
É o estado que mais inquieta. O corpo sem se dar à dor pode adoentar sem dar conta. No irromper furibundo de um punhal, por entre doses avantajadas de sangue vertido, já nada conta. Pois no osso não magoa. E os punhais, vorazes, cuidam dos danos consecutivos.

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