20.9.16

Ensaio

Pixies, “Debaser”, in https://www.youtube.com/watch?v=PVyS9JwtFoQ
Ensaio, como verbo: ensaiamos o modo de retribuir à vida o muito, ou o pouco, ou o suficiente, que ela consagrou. É uma ideia que merece, ao menos, começo de formulação.
Todavia, o exercício aborta aos primeiros instantes. Talvez haja coisas que não merecem retribuição, que não estão fadadas para a retribuição. Julgar que somos peões aleatórios numa ordem qualquer onde está uma divindade, um destino, ou uma fórmula a confirmar uma certa casualidade, distribuindo prebendas e angústias, proezas e fracassos, predicados e fragilidades, é um tremendo erro metódico. O ensaio soçobra às primeiras intenções.
Não devemos nada. A ninguém, a não ser àqueles que juntaram condições sem as quais não seria possível afinar a mira a um certo propósito. O que faz parte das condições normais por que se rege o curso da vida, no fim de contas. Um agradecimento é devido. Às vezes, pensamos que a justiça impõe a retribuição a quem juntou tais condições, mais à frente. Que não seja vista como retribuição que era a petição de princípio do ensaio (substantivo) sobre o ensaio (verbo) de retribuir à vida o muito que ela nos consagrou. Pois nessa ordem de ideias, não estarei errado se conjeturar que as coisas seguem uma ordem e que a nossa vontade pode, no máximo, ser fator destruidor dessa ordem e dos fatores que se ensaiam para a tenção cobiçada.
Podemos ser os agentes que determinam o fracasso do bem a que queremos chegar se medimos as forças no sentido contrário ao necessário para o propósito chegar às mãos. Por outras palavras: é suficiente saber o que apetece e o que não devemos pôr em ação para não perturbar essa aspiração. O resto flui como tem de fluir, esperando pela medida certa do tempo, pelas pessoas que deixam de ser apenas figurantes anónimos, pelas palavras que se julgavam impossíveis, por um teatro que se monta com a congeminação paciente das pedras em seu devido lugar.
Há uma certa espontaneidade, contida naquilo que se ensaia como exigível para atingir um fim, que pertence ao lugar de onde se trazem os ingredientes que consumam a aspiração. Só temos de saber a finalidade pretendida e deixar o pensamento fluir, sem esbarrar nos sobressaltos que alquebram memória e vontade, para chegar a ter o sabor das coisas cobiçadas. Não temos de prometer ao invisível que se congeminou a nosso favor a devolução de uma medida qualquer da medida com que nos agraciou. As compensações não se ensaiam tendo um vulto indemonstrável como destinatário. E talvez não faça sequer sentido ensaiar a retribuição. A não ser que queiramos, em movimento narcisista, depositar nas mãos próprias uma dádiva qualquer.

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