25.4.16

Floresta (8)

Explosions in the Sky, “Landing Cliffs”, in https://www.youtube.com/watch?v=PGQgvdOPqOA
A apoquentação da dúvida viera na vez do medo da noite passada na floresta. As dúvidas sucediam-se: podia renegar as acusações que admitira antes? Podia confessar que jamais sentira arrependimento e fazer regressar o pleito à casa de partida? A redenção era imperativa? No estado em que se encontrava, não conseguia arranjar lucidez para desenhar respostas. Queria a presença do vulto. Levantou-se, pousando com cuidado o homem desmaiado no chão húmido. Tinha de urinar. Nestes preparos, não soube conter o chamamento, ao início em pouco mais do que um sussurro, depois com a voz crescendo de intensidade:
- Vulto, vulto. Preciso que venha até mim! Preciso.
Silêncio. Um silêncio pesado, como se todo o peso do nevoeiro se abatesse sobre o silêncio da floresta e o tornasse denso. Repetiu o chamamento:
- Vulto, há dúvidas que precisam do seu esclarecimento. De outro modo, não sei como proceder.
Nas suas costas, ouviu uma voz trémula. Ficou atónito: não era a voz do vulto; tinha parecenças, essa voz, com a do homem inanimado.
- O que queres de mim? – perguntou o homem retirado ao desmaio.
- Folgo em saber que despertaste. Sinal que o teu padecimento não é grave.
- E um pedido de desculpas, não achas que vinha a calhar?
(Orgulhoso, o homem condenado fugiu ao repto.)
- Eu chamei o vulto e foste tu que respondeste? Não entendo.
- Podes dizer que sou como uma segunda consciência de ti. Um substituto do vulto, que a estas horas está na sua imperturbável cura de sono. Sossega: tenho mandato para o representar.
- Pode lá ser tal coisa!
- Acredita. Se quiseres faço-te um resumo dos acontecimentos da noite.
- Como é possível? Estavas desmaiado este tempo todo.
- Já te disse: acredita no que digo. Estava para aqui prostrado, mas o meu eu omnisciente testemunhou tudo. Tudo. O julgamento pelo vulto. As tuas dúvidas existenciais. O dilema que te detém.
- Posso concluir que não foi por acaso que apareceste quando me embrenhei na floresta.
- Sim.
- E corroboras o julgamento do vulto?
- Se eu sou seu representante, creio que já sabes a resposta.
- Estás – dizes – a par das minhas angústias. Estás em condições de me ajudar, de dar resposta às perguntas que me assaltam?
- Julgo que sim.
- E se rejeitar a admissão de culpa que fiz perante o vulto? Até posso admitir que fiz tudo aquilo que o vulto me acusou, mas não reconheço culpa nesses atos. Nem reconheço no vulto autoridade para me julgar e aplicar punição.
- Julgas-me néscio? Achas que me podes enganar, que não estou ao corrente de tudo o que se passa? Devo recordar que admitiste os delitos e aceitaste, sob sugestão do vulto, que a redenção fosse tua responsabilidade.
- Não interpretes mal: não quis duvidar das tuas capacidades e até aceito que apareças aqui em representação do vulto. Mas a tua omnisciência devia capacitar-te para captares as dúvidas que me assaltaram depois da partida do vulto e antes que a manhã viesse.
- Não podes questionar a autoridade do vulto. Nem podes voltar atrás com a palavra que lhe deste. Se aceitaste ser o operário da tua redenção, em compromisso firmado com o vulto, aconselho-te a cumprir o preceituado.
- Mas nada ficou escrito...
- ...E é preciso?
- Julgas que me intimidas, mas estás enganado.
(O homem condenado quis avivar a memória do homem agora representação corpórea do vulto: umas horas antes, a luta entre ambos terminou com o desmaio deste.)
- Não dificultes as coisas. Estás a torná-las difíceis. Para ti mesmo. (Atirou o representante do vulto.)
- Essa agora. Queres experimentar do mesmo? O vulto metia-me medo, a sua transcendência deixava-me lívido. Tu és carne e osso como eu. Senti-o há umas horas, quando te deixei sem sentidos.
- E não te ocorreu que tudo isso não tivesse passado de uma encenação, um ardil para te levar a acreditar em determinadas coisas?
- Queres-me dizer que não desmaiaste?
- Tira as tuas conclusões.
- E que te deixaste vencer na peleja que tivemos?
- Provavelmente, a resposta está contida na pergunta que formulaste.
- A ver pelo andar das coisas, aposto que sabias como sair da floresta, apesar de ela estar mergulhada na noite pavimentada pelo nevoeiro.
- Conheço esta floresta como as minhas mãos.
- Prova-o: vamos embora, fico à espera que encontres caminho fácil que nos tire desta masmorra.
- Não tens umas dúvidas a precisarem de esclarecimento?
- Tenho. Podem esperar assim que franquearmos as portas de saída da floresta.
- Combinado. Vamos ao caminho.
(Os dois homens avançaram por um trilho, sempre com o homem representante do vulto à frente e o homem condenado na sua peugada. Este estava aliviado: afinal não estava perdido na floresta; e, afinal, já não iria passar a segunda noite ao relento. Mais a mais, o nevoeiro era implacável. Não dava sinais de cedência. Era como a ausência de consciência – julgava.)

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