20.4.16

Floresta (5)

Nitin Sawhney, “Firmament”, in https://www.youtube.com/watch?v=8SaxZGtzBAY
(Já não podia evitar. Parecia que o vulto estava à espera que ele começasse a conversa – a conversa que ditaria os termos do acerto de contas. Foi dele a iniciativa.)
- Qual a razão deste acosso?
- Não te ocorre explicação?
- Não vejo onde quer chegar.
- Vamos por uma digressão ao teu passado.
- E isso não pertence à minha consciência?
- Talvez não...
- ... Essa agora! Os meus desvios, os meus pecadilhos – ninguém tem nada a saldar as contas a não ser eu, e com a minha consciência.
- Talvez eu seja a personificação da tua consciência.
- Não acredito que assim seja. É apenas um vulto que tirou o dia para assombrar os medos meus. E logo em cenário tão dantesco como este que se pôs, eu e este homem perdidos na floresta, com o nevoeiro e tornar a noite uma cortina ainda mais escura.
- Devias saber que há oportunidades que compõem as suas circunstâncias.
- As coisas não são por acaso? E que ter vindo parar a esta floresta, na companhia deste homem que não conheço de lado nenhum, num dia de nevoeiro plúmbeo, foi a congeminação de forças cósmicas, ou o que quer que seja, de forças que me são superiores, só para disputarem o meu acerto de contas?
- És tu que o dizes.
- Posso saber do que venho acusado?
- Fico à espera que sejas tu a ler o teu laudo de acusação.
- Insisto: já que um vulto justiceiro tratou de me acossar desta forma, deixo ao vulto o imperativo da acusação.
- Posso-te ajudar, se insistes. Parece que a memória está a precisar de retoques. Ou que te recusas a soltar os podres que habitam por dentro de ti.
- Pois se esses podres só a mim dizem respeito...
- Mas, sabes, há uma altura em que somos chamados a depor perante nós mesmos. Com a ajuda de uma entidade exterior, que povoa a paisagem em redor com os rudimentos do questionamento de tudo, ou, pelo menos, do questionamento do essencial.
- Já entendi que não me deixará de mão se eu não confessar as podridões que, de acordo com a sua lente julgadora, me inquietam.
- Estou à espera.
- E depois de as confessar – partindo do pressuposto que tenho maus resolvidos assuntos dentro de mim – devo esperar punição? Será o vulto o meu algoz?
- Foges ao essencial: isso que perguntas são apenas “processualidades”.
- Preciso de saber as consequências que sobre mim se abatem se entrar neste jogo pérfido.
- Ah, chamas-lhe jogo pérfido? Mas não chamas pérfido a alguns comportamentos teus que aqui me trazem?
- Inicie-se o meu julgamento, pois. Fico à espera da acusação. Eu não me acusarei de nada. Tenho o meu direito à defesa, ao contraditório se achar que as acusações são infundamentadas.
- Facilitavas a tua tarefa se a iniciativa de desvelar as podridões partisse de ti.
- Continuo à espera.
- Alguns exemplos: as mentiras intencionais; o tirar partido das mentiras intencionais para te levares a uma posição privilegiada; a falta de escrúpulos, o gosto secreto em congeminar ardis de que são vítimas outras pessoas; o roubo de um coração, com lesão irremediável para um amigo teu; a castração dos teus filhos, incapazes de pensarem pela própria cabeça devido à asfixia que sobre eles cometes; aquele cão que mataste, sem outra razão se não o desafio imberbe de uns amigos; o adultério e o teu ciúme sem fundamento, a não ser a reprodução em ti dos fantasmas que te consomem caso a consorte te cominasse a mesma deslealdade que lhe deixaste em herança.
- Basta!
- Ainda não terminei.
- Basta! Já disse.
- E esse homem desmaiado por tua causa, pela ira que não consegues domar e que faz maltratar as pessoas que te são queridas e desprezar, com profunda antipatia à mistura, as pessoas que não conheces. Esse homem desmaiado, o estado dos teus atos, personifica a tua impaciência geral com o mundo. Personifica o profundo mau estar interior que te consome.
- Não quero saber de mais nada. Vou-me daqui.
- E deixas esse homem à sua sorte? Não interessa que ele possa estar ferido com gravidade por tua causa?
- Não me deixa outra hipótese. Mas, em não fiando palco alternativo, posso ao menos saber se a culpa tão farta que me é imputada determina punição agravada?
- Já lá irei. Antes quero completar o laudo acusatório.
- Ah, ainda falta alguma coisa?
- Sim. Sabes qual é o pior dos teus podres?
- ...
- É passares por tutor da moralidade, queres impor aos outros comportamentos que tens por ideais, e passares como lídimo intérprete desses comportamentos.
- Não tenho redenção, pelo que julgo ouvir.
- Não o disse.
- Agora que já fui confrontado com os meus tremendos podres, agora que percebi como é juiz o vulto que sobre mim adeja, falta saber a condenação.
- Isso fica ao teu critério.
(E, perante a perplexidade do homem medroso, o vulto evaporou-se no nevoeiro, deixando um enigma nas suas mãos.)

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