18.4.16

Floresta (3)

Deftones, “Passenger”, in https://www.youtube.com/watch?v=ycUk7ppM3To
O homem medroso, irado com as provocações do outro homem e com medo de passar a noite na floresta, usou de tanta força que deixou o outro homem inconsciente. Fora o resulto da luta em que se embrulharam.
Ao ver o outro homem estendido no chão, inanimado, o pânico, que já era muito, berrou mais alto. Levou as mãos à cabeça – pois não é esse o gesto comum quando alguém fica paralisado pela aflição? Desesperado e logo arrependido de toda a força usada, inclinou-se para atestar o estado do outro homem. A medo, a inclinação; vagarosa. Era dos filmes: às vezes, sem querer, uma peleja termina da pior maneira; a vítima da queda bate com a cabeça num sítio pontiagudo e encontra a morte.
As mãos trémulas aproximaram-se do outro homem. Não se mexia. O homem timorato chegou-se ao rosto do outro homem para sentir sinais de respiração. Ficou aliviado. O outro homem respirava. Devagar, mas respirava. Uma das mãos trémulas assentou sob a cabeça deitada no chão. Sentiu humidade. Podia estar ensanguentado – e o pânico cresceu outra vez. Era apenas humidade que repousava no chão, o produto de um dia inteiro tingido pelo nevoeiro. O outro homem estava desmaiado. Apenas. E este “apenas” era muito importante.
O homem pusilânime sentia-se sitiado. Queria fugir da floresta o mais depressa possível. Estava à beira da apoplexia só de imaginar o que seria a noite inteira no convívio da floresta sombria. Mas não queria abandonar o outro homem, que jazia inanimado a seus pés. Dividido e com o relógio a marcar o passo incessante do tempo, não sabia que resolução tomar. Uma metade de si dizia: “sê pragmático: foge deste lugar. Procura a porta da saída da floresta antes que seja noite.” Ao que a outra metade, mais propícia a dores de consciência, contrapunha: “Está aos teus pés um teu semelhante, desfalecido. Não o podes abandonar. Quem sabe se ele não vai ser devorado por animais que queiram ser chacais do que julgam um cadáver.” Logo a seguir, a parte menos humana advertia, em veemente sussurro: “mas se o homem desmaiado nem sequer é teu amigo. Não tens deveres. Estás num dilema, é bom lembrar-te. Se ficares a socorrer esse homem, quem sabe se os dois não são, durante a noite, o festim das bestas escondidas na floresta?” Ao que a metade piedosa contrapôs: “deves ficar com o homem. Ele está desmaiado. Deves auxiliá-lo. Tu causaste o desmaio, na posse de tão desproporcionada violência – não esqueças isto. É um módico que se te exige. E, além disso, quem te garante que se fores sozinho pela floresta fora consegues não passar a noite preso à floresta?” (E a metade sem escrúpulos, ao ouvir a derradeira frase, comprazeu-se: afinal, a curadora da boa consciência também escorrega para a ignomínia e para o egoísmo.)
Não conseguia sopesar os argumentos que se digladiavam. Perdeu lucidez, em parte porque já se redigia a penumbra no horizonte, em parte porque estava transtornado com os efeitos do combate. A escuridão foi tomando conta da paisagem. Já não conseguia distinguir as fronteiras das árvores nem as formas das coisas que compunham a paisagem. A noite tomara o seu lugar na floresta. Era irremediável. Tão irremediável como pernoitar ao relento, no meio de uma floresta de trevas, na companhia de um homem por ora desmaiado. E acossado por um vulto.
Recostou-se ao tronco grosso de uma árvore e puxou o outro homem para junto de si. Agasalhou-o. Oxalá que os dois juntos conseguissem gerar o calor preciso para derrotar o frio e a duradoura humidade da noite. E, oxalá também, o outro homem não demorasse a acordar. O homem temeroso ainda não estava convencido que o outro homem apenas estava desmaiado. Pediu ao tempo para não correr a destempo. A não ser no que à duração da noite dizia respeito. Pois, a esse respeito, o homem temeroso começou a entoar preces que concorressem para o apressuramento da noite. E que a noite metida no meio da floresta das trevas não fosse pródiga em percalços.

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