29.4.16

Floresta (12)

P. J. Harvey, “The Community of Hope”, in https://www.youtube.com/watch?v=qsLqsqbObyg
O sonho deixara-o inquieto. Já não conseguia recuperar a tempo o sono de que se considerava credor. Os pensamentos amontoavam-se. Comprimiam-se como se estivessem em processo de centrifugação dentro de uma máquina de lavar. Sentia-se imundo, mas não tinha vontade de tomar banho – e, com isto, quebrava uma promessa que fizera quando vinha no carro do guarda florestal. Olhou para o relógio. Não faltava muito para a descendência chegar a casa. Pouco depois, seria a vez da consorte. Lembrou-se: era quinta-feira, dia de receber o sogro ao jantar. Levantou-se da cama, resoluto: tinha de sair de casa antes que alguém chegasse. Hoje não estava com disposição para aturar ninguém. E muito menos a habitual prosápia do sogro, aquele desdém sobranceiro quando metia conversa com ele. Nem mudou de roupa. Saiu de casa, apressadamente, nos mesmos preparos em que tinha chegado: angustiado, deslavado, envergando uma roupa que já tinha por andrajosa.
Saiu. Não sabia para aonde. Não queria estar em casa. Não queria a companhia da família; ou, admitia, neste dia era terrível companhia. Sair de casa para os seus não o aturarem, era um ato de generosidade. Tinha a certeza que a consorte e os filhos preferiam a sua ausência do que tê-lo à mesa a protestar com todos e por tudo. Os pés ainda cansados andavam vagarosamente pelas avenidas largas da cidade. Errava pela cidade, tentando arrumar os pensamentos que se sobrepunham, tentando aferir se devia expiar a culpa como tinha sido encomendado pelo vulto. Ter tirado a vida ao homem que foi sua companhia na floresta não era apoquentação – e nem sequer foi motivo de perplexidade, tão normal julgou o ato. Protegia-se, talvez de si mesmo, certificando que não fora assassínio, pois o outro homem era uma ficção, apenas uma emanação do vulto em personificação da sua consciência.
Precisava de falar com alguém. Alguém que, ao escutá-lo, ajudasse a arrumar as ideias desalinhadas no pensamento. Ao desfazer a esquina, encontrou uma igreja. Sentiu um impulso para entrar na igreja. Podia ser que um sacerdote estivesse de serviço no confessionário. Desvalorizou a incoerência do ato (era irremediavelmente ateu). Já pouco importava, na aridez de coerência em que se achava sitiado. Não encontrou o confessionário. Já não entrava numa igreja desde que se casara, e isso já ia para uns anos valentes, tantos que a memória se esfumara, ou os costumes eclesiásticos tinham mudado. Uma mulher velha que cuidava das flores no altar confirmou que o padre estava disponível. Devia meter pela porta lateral, seguir até o fundo do corredor e bater à porta.
Um clérigo septuagenário recebeu-o. Não envergava sotaina, nem havia o confessionário como se habituara a ver confessionários, o que o deixou contrafeito. Hesitou. O padre esperava que ele falasse, para saber ao que vinha. Não parecia amistoso, mas a ideia que tinha dos padres é que todos eram austeros. Por fim, avançou:
- Padre, ouve-me em confissão?
- Um padre nunca nega a confissão a um crente.
- (Ocultando o ateísmo, não quis apresentar credenciais que travassem o empenho do sacerdote na confissão.) Ando para aqui atormentado com uns acontecimentos recentes. Que, todavia, compulsam uma vida inteira, os delitos cometidos e que agora alguém veio exigir em paga, ditando redenção.
- Diz-me o que te atormenta.
- Não vou entrar em detalhes, que era demorado. Digo que fui confrontado com um vulto, que se diz ser um émulo da minha consciência. O vulto sentou-me no banco dos réus e acusou-me de um rol imenso de delitos. Depois, fez-me admitir a culpa e exigiu que fosse o fautor da redenção exigível. Aceitei na altura. Depois arrependi-me. Não reconheço no vulto legitimidade para ser meu julgador. Agora, não sei o que hei de fazer.
- Tens a certeza que viste o vulto? E que o ouviste quando te acusou?
- Sim. Adianto-me à pergunta seguinte: não estava a sonhar, nem estava a ter alucinações. Nem tinha bebido ou tomado drogas.
- E ele apresentou-se como tutor da tua consciência?
- Sim. Acha possível?
- Acho. A consciência é imaterial. Pode-nos aparecer em múltiplas hipóteses, múltiplos formatos.
- Estava assustado quando o vulto apareceu. Foi por isso que admiti tudo o que o vulto incluiu no laudo de acusação. E admiti, também, que trataria da minha redenção, já que o vulto me encarregou de achar solução que remediasse os muitos males que fiz ao longo deste tempo todo. Depois, achei uma intrusão intolerável. Não acredito que o vulto seja o alter ego da minha consciência.
- Será isso? Ou apenas teimosia, um profundo autismo em que te encerras e que te torna incapaz de admitir os males que cometeste e que esses males exigem redenção?
- Só acredito na consciência que vive aprisionada dentro de mim.
 -E ela não te faz interrogações?
- Não. Ou melhor: faz, mas como eu a domino, ato contínuo ela retira as interrogações e consigo dormir em sossego.
- Não achas, portanto, que deves expiar a culpa?
- Não. Tudo o que fiz foi premeditado. Se quiser, diga que sou sociopata, mas não me revejo nos cânones que comandam as pessoas. As pessoas ditas normais.
- Não vejo como posso ajudar.
- Não vim aqui à procura de repostas. Vim aqui para falar. E para ter alguém que me ouvisse.
- Se quiseres, encomendo-te umas preces. Pode ser que te ajudem, as preces.
- Sou ateu. Não é dessa ajuda que preciso. Obrigado por me ter ouvido.
Saiu da igreja, intempestivamente. Se calhar, não devia ter confessado as angústias. De repente, notou que já estava fora de casa há tanto tempo e ninguém, nem a consorte nem os filhos, procurou saber por onde andava, se estava tudo bem com ele. Ninguém dava pela sua falta.

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