31.3.16

Medalha de mérito

Massive Attack, “Angel”, in https://www.youtube.com/watch?v=hbe3CQamF8k
Como se aprende nos escuteiros: ajudar as velhinhas a atravessar as ruas em segurança. Os lobinhos são como anjos protetores que mandam os carros abrandar da velocidade estonteante com que circulam, não vão atropelar as indefesas anciãs. Depois semeiam-se medalhas de mérito na lapela dos escuteiros, que as ostentam com indisfarçável orgulho. A bondade é tributária da recompensa.
As medalhas de mérito não deviam andar à mostra. O que só confirma que os escuteiros são exibicionistas e moralistas de primeira água (o que, no caso do segundo atributo, não constitui virtude). São moralistas, porque gostam da posição muito pedagógica de quem abre os olhos ao cidadão distraído das suas cívicas obrigações, apontando o dedo ao “caminho certo” para que a sociedade seja um lugar respirável. Que me lembre, ninguém pediu aos escuteiros e a outros moralistas de idêntica cepa para serem educadores dos cidadãos que eventualmente andem de palas nos olhos. Segundo (e voltando à primeira desconsideração), os moralistas e os escuteiros reivindicam a posição altaneira de quem arroteou o “caminho certo”. Exigem medalhas em contrapartida. Parecem o cão Mutley excitado à espera que Dick Darstadly pespegue uma medalha no seu peito. Não viria grande mal ao mundo, não tivesse a exigência segundas intenções: esfregar nas fuças outras as medalhas atribuídas por louváveis serviços ao grupo. É exibicionismo.
Se fossem altruístas, e se praticassem a bondade sem segundas intenções (o que eles configuram como bondade, para o caso de a bondade poder ser delimitada com objetividade e representar virtude admitida), não sobraria a vaidade das medalhas de mérito ostentadas à lapela. Porque, depois, nós, desafortunados a quem não são dadas proezas que permitam esbofetear ufanamente a generosidade praticada em favor do próximo, somos convidados a sucessivas genuflexões aos medalhados. É como se tivéssemos de agradecer porque os escuteiros e afins praticaram generosidade para fora de si mesmos.
Segundas intenções, convém lembrar outra vez. O que diminui o palco para a moralidade em cujo altar se entronizam e aumenta a mácula do exibicionismo. E como os dois (moralidade e exibicionismo) costumam fazer parelha, fujo a sete pés de escuteiros e moralistas quejandos. Prefiro as minhas fraquezas. E a discrição.

30.3.16

Steve McQueen

Teho Teardo & Blixa Bargeld, “The Beast”, in https://www.youtube.com/watch?v=0t6Bu7uuPAw
A competição. A vida é o lagar da concorrência. Um espartilho indolor onde os afoitos – ou, dir-se-ia: os que não têm escrúpulos – vingam no rebordo das águas que beijam o parapeito da piscina. A competição: dizem, alguns desapiedados de remorsos, é onde vale tudo. Onde tudo tem de valer. Sob pena de os metódicos da decência (no que quer que isso seja) serem deixados para trás, vituperados no altar incensado onde se depõem as cinzas dos derrotados.
E se, talvez, na competição não importasse a listagem dos vencedores e dos perdedores? Dirão os ascetas da modernidade: isso é de tempos datados, ou de gente apoderada pela inocência, por serem estultos e vítimas da sua estultícia. Tempos límpidos seriam os da competição pura, sem retorcidas lógicas que trazem viés nos resultados. Tempos desenevoados em que um código de honra (repetem, irados, os ascetas da modernidade: o que é a honra?) se atirasse para a imensidão do ar e devolvesse uma chuva medicinal que ungisse todos, sem exceção. Tempos invejáveis, se gente ocupando lugares antagónicos num pleito não jogasse à traição quando um oponente se ajoelhou acometido por uma enfermidade.
Talvez seja uma impreparada lupa a que passa o palco este a pente fino. Talvez venha de um tempo já sem tempo, pródiga em ilustrações desconhecidas ao tempo hoje. Talvez não haja um módico de respeito, a começar pela pessoa própria, quando a competição transfigura os opositores e tudo se passa como se fôssemos uma imensa selva já sem regras. Talvez não haja lugar às sementeiras propícias que espreitam no umbral radioso. Ou, talvez, os mapas tenham mudado e os pés que os pisam também.
No sarcófago dos argonautas, para onde foram atirados, sem remédio, os manuais de outrora, não há flores. Ninguém lá põe flores. Hoje, já não há amadores. Só gente perita. Em tudo e num pouco do resto. Os rostos não definham. Ninguém perece por inércia. Todos vindicam andar dois passos à frente dos demais. Pena que este seja um jogo de soma zero.

29.3.16

Bilhete de ida

Destroyer, “Times Square”, in https://www.youtube.com/watch?v=krpcRnxVCmA
A lógica nómada que cortara a eito toda a sua vida: um lugar exaurido, um lugar que deixara de ser pertença. Uma pertença temporária, como dantes. Deixara de sentir os pés enraizados no chão. Deixara de perceber a gente daquele lugar. Era como se as pessoas falassem um idioma ininteligível. E ele se sentisse forasteiro num sítio onde chegara forasteiro, mas com a promessa de se transformar num ente adotado.
Agora era a água que deixara de ser transparente. Era o feixe de luz raptado pelas trevas, que surgiram com um sonho estarrecedor. Os rostos todos anónimos, até os que julgava serem familiares. Outra vez: um lugar exaurido. Um lugar que deixara de fazer sentido. Os esteios perdidos na penumbra que se deitou sobre o horizonte. As possibilidades abreviadas nos corredores estreitos por onde os braços se debatiam. Sabendo que aquele era um labirinto sem saída entreaberta. Sabia de antigamente: em deixando de haver o chamamento do lugar, em se perdendo os limites do corpo dentro do lugar que passou a ser um corpo estranho, a única possibilidade era comprar bilhete de ida.
Tratou dos procedimentos da viagem. Tratou de emalar os pertences – os parcos haveres que armazenava na esquadria dos lugares, por saber que uma demanda qualquer o extraía do lugar aportado. Ao início da saga nómada, quando ainda estava dominado pelo sangue ingénuo e as resoluções tinham gravação em talha dourada, com toda a solenidade, ao início gastava tempo a ajuramentar fidelidade ao lugar novo que passara a ser sua casa. Mas a idade não tolera a perenidade da inocência. Aprendeu a conviver com as sobras de si mesmo, a tolerar os humores voláteis, as contracurvas da personalidade.
Agora, já não fazia tais juras. Um lugar adotado como cais era – já o sabia – um cais provisório. E aprendeu, ainda, que os ocos planos vertidos no tempo vindouro eram um esbanjamento. As forças deviam estar voltadas para a fusão do tempo presente, gravitando na pulsão do lugar existente, no momento existente. Aprendeu: a não fazer promessas. A começar pelas promessas voltadas para dentro de si mesmo. Os lugares eram apeadeiros que se emprestavam a uma miríade de instrumentos à disposição da sua alegria.
Aprendera: a pedir bilhete de ida. Os lugares demandados não seriam lugares predispostos a revisitação.