4.2.16

Camões, o cobrador de fraque

PJ Harvey, “The Wheel”, in https://www.youtube.com/watch?v=7ReW0jJkag8
O que dirias se te aparecesse o Camões, vestindo impecável farpela, executando uma dívida de que sabes não ser titular? Porventura, ficarias com a impressão que estavas imerso num sonho. Camões já morreu há muito tempo e a última vez que ouviste falar a ciência havia a imperativa certeza que os mortos não regressam dos túmulos. Talvez não fosse o Camões, mas uma personagem que, dirias, ser seu sósia.
Resolvida a primeira equação, a que te retirava de um possível sonho surrealista, tinhas outro dilema que precisava de solução. A dívida exigida não era tua – ou, pelo menos, não a reconhecias. Dirimido o que podia ser um sonho, tropeçavas no que tinha potencial de pesadelo. Com certeza que o apessoado cobrador de fraque teria de exibir prova da dívida e de seres seu titular. Esperavas por documentos, mas tinhas medo que eles te fossem mostrados. Ele há tanta coisa estranha, maquinações, solipsismos, conspirações que arrematam inocentes para um lodo inesperado, que não podias excluir alguma inquietação.
Continuavas com as interrogações que atiravam lume para a perplexidade: e se te fossem mostrados documentos a provar que tinhas contraído a dívida, seria possível não te lembrares dela, como se fosse uma anestesia de parte do passado? Para piorar as coisas, o cobrador de fraque falava como o Camões. Rebuscado. Um idioma atávico. Como se não fossem suficientes a barba hirsuta e a venda no olho esquerdo, a juntar à fatiota impecável mas que ninguém usa nos dias que correm, o cobrador de fraque até falava em rima enquanto anunciava, impassível, a origem da dívida e o montante correspondente.
Mas depois alguma lucidez veio ao regaço, pondo ordem no tabuleiro onde tudo se jogava. Camões não era, de uma vez por todas: se dúvidas houvesse sobre uma não anunciada (pela ciência) possibilidade de ressuscitação dos finados, tiraste as teimas porque Camões tinha o direito como olho cego. Depois, a cobrança de dívida acontecia num inóspito vale gelado, com um glaciar em pano de fundo. E estavas nu, como se fosse possível a um mortal aguentar os pés nus enfiados no gelo e as temperaturas negativas que se faziam sentir.
De facto, sentias os pés gelados. De repente, um safanão foi a desejada alvorada que te subtraiu a um, de facto, pesadelo. O cão também estava a ter um pesadelo e estremeceu em cima das tuas pernas. Foi quando notaste que o cão tinha roubado o bife que deixaras a descongelar, repousando o naco de carne, ainda congelada, encostado aos teus pés.

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