20.1.16

Carteiras de cromos

Tame Impala, “The Less I Know the Better”, in https://www.youtube.com/watch?v=sBzrzS1Ag_g    
Não está bem a análise quando ela anda desta maneira: dizermos que encontramos um cromo por a personagem ser uma aberração, ou por navegar numa extravagância qualquer (como se os extravagantes merecessem o degredo), ou por ser alguém que, de tão enfadonho, é credor de distância (e higiénica). Eu digo que está mal. A alegoria peca por excesso.
Vamos lá atrás. Quando, em miúdos, colecionávamos cromos e os colávamos nas cadernetas feitas à medida. Havia cromos repetidos. Foi quando começamos a perceber os rudimentos da economia capitalista. A lei da oferta e da procura. E o princípio da escassez dos recursos – e de como os mais valiosos cromos estavam em falta nas páginas da caderneta e teimavam em não sair, por mais que continuássemos a comprar carteiras e carteiras de cromos. Para além dos cromos raros, havia um pouco de tudo: os que admirávamos e tratávamos com zelo; os que nos eram quase anónimos, ou pelo menos indiferentes (a maioria); os que tinham nomes impronunciáveis, o que alimentava jogos florais em redor desses nomes; os que tinham carantonha feia, assustadora, e que pertenciam ao escol dos cromos de que nos ríamos (sem sabermos que, tempo depois, escarnecer da feiura é politicamente incorreto); e uns quantos, alcandorados ao lugar de quase pequenos ódios de estimação, a quem atirávamos, depreciativamente, o vitupério de “cromos”. Talvez venha daí a semântica do cromo como alguém de quem se troça.
Regressemos do passado: considerando a descrição da constelação diversa dos cromos de uma caderneta, não tem lógica chamar “cromo” a um ser desprezável, ou a um ser apenas risível, ou a alguém que julgamos tresloucado por ser excêntrico. Esses espécimes são uma minoria na vasta paisagem de pessoas que andam à volta – dos conhecidos, ou dos anónimos em que esbarramos na rua, no cinema, num concerto, num restaurante.
Há uma expressão idiomática mais acertada do que “cromo”: é “dois de paus”. Descontando a discriminação do naipe (não se percebe porque os “paus” valem menos do que outros naipes, ao ponto de serem desta maneira menosprezados), um dois sempre é um dois: a carta menos valiosa do baralho. Se calhar, é a isto que nos referimos quando mandamos a antonomásia de “cromo” a alguém.

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