29.1.16

A espera

Massive Attack (feat. Tricky and 3D), “Take it There”, in https://www.youtube.com/watch?v=hWSt_q7M3zI
Meticulosamente. Metodicamente. À espera, em hibernação, à espera. Virava o olhar a poente e esperava que do céu desmaiado viessem respostas. Mas se nem sequer sabia qual era a demanda de partida, como podia esperar que as respostas tivessem um lustro qualquer?
Porfiava, contudo. De braços cruzados. Sono renitente. As pessoas em catadupa e o homem furtivo indiferente a elas. Do poente vinham as ondas macias que temperavam o mar adormecido. Vinham nuvens ocasionais para conferir um mapa novo ao olimpo. Mas o homem furtivo embotava o pensamento, como se o metesse em formol à espera que as esperas fossem vindicadas.
Um dia, em rara confidência a um amigo, ouviu contundente admoestação: o método da espera era uma infração de que era vítima única; mais valia ir a uma bruxa para exorcizar a anestesia que o dominava pela inércia. (“E eu não acredito em bruxas, de todo” – vociferou o amigo, querendo-o convencer da gravidade do caso.) Tão depressa ouviu as palavras iradas do amigo, como depressa as esqueceu. “Oxalá despertasse do torpor” – foi o pensamento que assomou à superfície. Naquele instante, admitiu que andara refém das esperas inconsequentes tempo de mais. A espera só o pusera à espera de um porvir que não desatava. Era o nó górdio que empenhava a diligência das empreitadas e impedia que soubesse cerzir resoluções que servissem de cartografia do futuro. Mas o letargo tinha tamanha capacidade de dizimação que a espera em cascata apenas agravava a sua fragilidade.
Permanecia furtivo, de si mesmo. Os dias e meses, em forma de anos acumulados, sitiado por uma espera sem saber do quê exauriam forças imperativas para dobrar o braço à letargia. Era como se por dentro habitasse um demónio confrangedor que o manobrava, empenhando a sua vontade, a sua autonomia. Anestesiado, não conseguia chegar ao diagnóstico. Continuava à espera. À espera. Até que já não houvesse serventia na espera. Por demissão do tempo, entretanto caduco.

28.1.16

Em nome próprio

Goldfrapp, “Utopia”, in https://www.youtube.com/watch?v=QUB7e3BtnvU
Não era dado ao heroísmo, nem gostava de alardear coragem – não achando, sequer, que a coragem era um predicado em falta na abundância de covardes. Não queria exibir uma doce loucura que o adestrasse na diferença dos demais, muito acomodados na planura que renegava importunações. Não queria ostentar medalhas conferidas por bravura, que essas não são mantimento para a alma e a imagem que os demais de si faziam não era fazenda que obstruísse o sono. Não era ambição ser líder de fação, nem que fosse por interposta pessoa.
Não colhia nenhuma das hipóteses expostas – nem de outras que se pudessem propor, arregimentando lugares-comuns do comportamento do comum dos mortais. (E antes que se julgue que por aqui fazia a diferença: solenemente proclamava não estar nos antípodas do “comum dos mortais”.) De parte todas as hipóteses arbitráveis, sobrava o fundo mais fundo: gostava de falar em nome próprio. Evitava citações de outros. Até as paráfrases eram travadas no limite do possível; depois desse limite, onde já nada se inventa e outros antes se pronunciaram, era impossível a abolição das paráfrases.
Gostava de acordar de peito aberto. De não ocultar o que queria dizer. Ou sentir. Julgava-se perante um imperativo que sobre si pesava: tinha de ser o que se fizera, como se fizera, sem arremedos que eram reconfigurações pelo estalão de outros. Fazer de conta, era hipótese que o descompunha por dentro. Nem que os descaminhos da fantasia convidassem à ilusão e as medidas fossem tiradas pelos alinhavos que os olhos não reconheciam, o sangue fervia de incómodo se a deslealdade fosse reificada. Por isso, recusava o papel de ator.
Só que, às vezes, para não abrir feridas que depois tinham demorada cicatriz, procedia de acordo com outro método. Em desconfiando que os sintomas pressagiavam dilacerantes dores, lobrigava nas traves paralelas da matéria sensível. Nessas alturas, continuava a dar a cara, mas de lado. Como se sulcasse nos interstícios do real, consciente de que as consumições locupletam o espaço que medeia entre estar vivo e o caixão da desrazão.
Fosse como fosse, era em nome próprio que se depunha perante o cosmos. Recusava ser testa de ferro. Negava ser partição de si mesmo em múltiplos alter egos. Já era consumição suficiente o que habitava em si. Só fazia sentido assumir o eu de que sabia existência. E dava a cara por essa causa.

27.1.16

Maré baixa


Beirut, “Gibraltar”, in https://www.youtube.com/watch?v=6gypBEmz2nk
Que sinais nos entrega a maré baixa? Que segredos desembacia, quando o mar encolhe e as rochas e o resto ficam à mostra? Despojos de naus antigas semienterrados nas areias descobertas, à espera de serem nossa fortuna? Seremos, através da baixa maré, os respiradouros que os peixes perdidos procuram? Conseguiremos encontrar, sob a luz branca de um luar desenfreado, seixos em forma de sortilégio? O que nos contam os desperdícios entre as rochas erodidas, entre as árvores-cadáveres trazidas pelos rios caudalosos e as boias de plástico que se desprenderam de navios que deitaram o peito ao mar alterado? Que sabemos serem as entrelinhas da maré baixa, da maré tão baixa que deixa ver o que costuma estar imerso? Teremos ruínas edificantes soerguendo-se entre as areias descompostas? Alvéolos que denunciam cefalópodes que precisaram de refúgio, atraiçoados por tão baixa maré? O que fazem homens metidos em escafandros se as águas se meneiam tão rasas? E as mulheres do campo recolhendo nacos de madeira que pretendem vender como lenha, vão à maré baixa precisadas de novos réditos? Deixam brincar as crianças na embocadura da maré sem desconfiar do mar que esconde ardis no disfarce da maré baixa? A areia molhada, compacta, o que tem para nos contar – ela que habitualmente não se deixa ver e guarda todos os segredos que por ela passam? Sabem os pescadores decifrar o mapa da maré baixa, se até eles, por mais experientes, não costumam deparar com mar tão recuado? O que diriam os capitães dos navios nas proximidades se, enamorados pelo areal, ficassem presos nas armadilhas da maré baixa? E se esquadrinhássemos as rochas alisadas pelo mar castigador, encontraríamos sereias depostas, despojos de navios assaltados por uma tempestade, um golfinho com óbito por anunciar, água lodosa represada entre os rochedos? Ou, apenas, uma garrafa envelhecida, já sem cor, contendo um pergaminho com mensagem por ler? O que nos seria dado a ler nessa mensagem (acaso conseguíssemos desabotoar a garrafa da sua duradoura reclusão)? Que mais interrogações seriam fermentadas, se viéssemos benzer uma maré baixa?