25.12.15

Sem protesto


Noiserv, “I Was Trying to Sleep When Everybody Woke Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=k2yzRRSR4C0    
I
A mulher curvada entra na rua estreita, carregada de sacos. Sente um calafrio –e não é por causa dos maus preparos da rua, com vadios em sono tardio e drogados em consumo de drogas, indiferentes ao demais: é que da rua tão estreita não se alcança o céu e, por conseguinte, a luz do sol não a chega a aquecer.
II
O rapaz acomodou-se na última fila da última carruagem do comboio. É tarde e o comboio só não vai sem gente porque uns estroinas irromperam e descompuseram o silêncio próprio da hora tardia. O revisor, na companhia de um polícia, passa revista à carruagem. Trazem cara de poucos amigos, para intimidarem os estroinas em vez de se sentirem intimidados. O rapaz silencioso não dá conta de nada. Imerso nos auscultadores, só nota a presença da música que entra, em alta gritaria, pelos ouvidos.
III
O polícia acabou o turno. Muda a roupa – sempre fez questão de não sair do turno na posse da farda que o empossa num módico de autoridade. Vai apanhar o autocarro. À sua frente, um rapaz ainda jovem é acometido por um ataque epilético. Duas senhoras idosas deitam as mãos à cabeça e gritam por socorro – e julgam que fazem a sua parte na salvação do pobre rapaz. O polícia pode usar os ensinamentos que recebeu no tirocínio para a função. Mete os pés pelas mãos, tomado pelos nervos – e fica com um dedo esfacelado, mordido pelo rapaz em agonia. Que continua em agonia, até o ataque se diluir em nada.
IV
A mulher que fazia preces para lhe ser devolvido o amor prepara-se para um encontro romântico. Ajanota-se, o melhor que sabe. Vestido sensual, demorada visita ao cabeleireiro, maquilhagem cuidada, um decote que provoca homens atentos. E as fantasias sem travão à medida que cumpre o protocolo antes de estar em preparos. As horas passam e o prometido galã demora a tocar à campainha. Acabou a jantar sozinha, com o rosto em frangalhos pelas lágrimas do desamor que já habituou a verter. Já ébria, disse: “oxalá consiga entrar no convento”.
V
O executivo garboso sai do escritório para as tardias compras de natal. O rol é extenso. É o único dia do ano em que aceita os pergaminhos da democrática convivência com o povaréu: uma espécie de penitência pessoal, a paga pelas malfeitorias que sabe ter cometido durante o ano. Pelo caminho, quase atropelava a mulher curvada quando dobrava a esquina à saída da rua estreita, quase esbarrava no rapaz com os fartos auscultadores e trajes próprios dos gandins de agora, foi multado pelo polícia que teve, na multa de estacionamento, o ato último antes do fim do turno. E esqueceu-se que tinha combinado um jantar com uma mulher lúbrica que conhecera numa vernissage e que tinha arregimentado para o papel de (mais outra) amante.

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