23.11.15

Dos amores impossíveis


Faith No More, “Easy” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Kks_fpCzjDE    
I
O engenheiro fiscalizava as obras de repavimentação da avenida quando o olhar esbarrou numa mulher voluptuosa. A mulher correspondeu. Entre a troca de olhares cúmplices, os dois demoraram-se no sítio onde os olhares se cruzaram (se não fosse pelo arrepio na espinha, não estariam todo aquele tempo estáticos num lugar ainda por cima desagradável). Trocaram os números de telemóveis. Combinaram um jantar. A química desfez-se durante o jantar. O engenheiro soube que a mulher era astróloga (disse, ufana, “apareço na televisão e tudo. Nunca me viste?”). O engenheiro, racionalista como há poucos, sentiu um pedregulho de gelo a deslizar pelo corpo abaixo. Podia lá enamorar-se de uma astróloga se ele, tão devotamente racionalista, deplora essas coisas esotéricas? Pagou o jantar e despediu-se da mulher. Para sempre.
II
A menina não parava de pensar no rapaz que conhecera, dois dias antes, numa livraria na baixa da cidade. Andavam os dois a matar o tempo com sede das novidades editoriais. Acabaram a lanchar juntos. Ela acreditava que estas coisas só vinham nos romances baratuchos e, todavia, estava a passar pela experiência. Afinal, não devia desdenhar dos romances baratuchos. Mas era outro o sobressalto que a afligia, a ponto de a distrair da aula. Enquanto rabiscava uma folha de papel em branco e, na mesa do lado, a colega escrevia em estenografia para não perder pitada da lição, ela só pensava na impossibilidade daquela paixão. Os camaradas do partido não dariam autorização à relação com um rapaz de boas linhagens e abastado.
III
A costureira de meia idade, ainda solteira, caiu de paixões pelo motorista do autocarro trezentos e trinta, que ela apanhava todos os dias da semana à mesma hora. Nunca lhe deu para tamanha coisa, ela que sempre foi tão exigente com os homens e nunca se convenceu a casar com nenhum. Mais a mais, pensou, irritada, já não tinha idade para estes devaneios pós-adolescentes. Um dia simulou, à entrada do autocarro, a queda dos haveres que vinham ardilosamente armazenados em três sacos de supermercado. O motorista puxou o travão de mão e saltou a divisória que separa o posto de condução da porta da entrada, para ajudar a costureira. Meteram conversa. Que se prolongou no fim da linha percorrida pelo autocarro. O motorista notou que a costureira foi até ao fim da linha, ela que costumava sair quatro paragens antes. Ela queria combinar um encontro depois do expediente do motorista. Este não anuiu. De repente, pôs de lado a cortesia, até um certo galanteio que estava a dedicar à costureira (ou, pelo menos, ela assim o entendeu), e respondeu com rispidez: “o meu namorado ficaria muito maldisposto se eu fosse sair consigo.
IV

Os amores impossíveis são uma contradição de termos. Se nunca o foram, a sua impossibilidade não chegou a ser atestada.

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