31.8.15

O que apraz dizer sobre um módico de etiqueta

A Naifa, “Inquietação”, in https://www.youtube.com/watch?v=WavxYtR2AqY
O senhor de meia idade sai, com classe, do automóvel topo de gama. Impecavelmente apessoado, roupas da cor a condizer, gestos aristocráticos, senta-se à mesa do restaurante. Não tira o casaco - que é falta de etiqueta. Fala gentilmente com a empregada de mesa. Faz o pedido sem gesticular e sem que quem amesenda ao lado perceba o que foi encomendado; o tom de voz foi discreto, mas percetível.
Quando vem o almoço, o senhor de meia idade e linhagem aristocrática não perde a descompostura. Sem pousar os cotovelos na mesa, começa a ingerir o repasto em gestos lentos e suaves. A deglutição é a preceito. Nota-se o gabarito pela maneira como é adestrado no manusear dos talheres. Pousa-os de tal forma que seja interpretado pelos empregados do restaurante como sinal de gratificação pela refeição. Como não é arrivista e não precisa de dar nas vistas, consegue manter pose discreta mas que afivela à distância linhagem aristocrática. Não quis sobremesa. Ao pagar, deixa gorjeta generosa. Levanta-se com discrição, empurra a cadeira com suavidade e despede-se cortesmente dos empregados do restaurante.
Cá fora, quase tropeça num homem que terá a mesma idade. Traz a tiracolo uma pochette e usa sandálias. A camisa gasta e escura transborda o cinto das calças. Pelo esgar, nota-se o incómodo por quase ter esbarrado em tão aristocrática personagem. Imagina os trejeitos de etiqueta do figurão sentado à mesa do restaurante. Reprova a etiqueta, dando por assente que gente deste calibre fica presa ao simbolismo dos gestos e não dá atenção à matéria substancial. Não entende que está a ser tão preconceituoso como os preconceitos que atesta ao fleumático homem que, imediatamente, leva com o rótulo de monárquico. Não se importa de ser um paradigma de anti-etiqueta. Faz questão em não ter modos à mesa; não que os desconheça, apenas faz questão de transitar pelos seus antípodas, desdenhando da etiqueta por desprazer por quem a cultiva.  
E o narrador, ao ser observador de ambos os exemplares da fauna social, fica desorientado. O que mede os preconceitos em que acantona o outro talvez seja mais preconceituoso ainda. E a denúncia de preconceitos sobre os preconceitos pode representar uma terceira camada de preconceito. O narrador da história fica inquieto ao tropeçar nos seus próprios preconceitos.

28.8.15

O livro dos contos encantados


Antony and the Johnsons, “Mysteries of Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=GEv1zxgZSxg
Vai às páginas deste livro. Do livro com folhas finas, como se fossem linho de primeira. Do livro com as páginas que não amarelecem, de tanto resplandecerem por serem lidas por ti. O livro que te respira, que contigo verte as lágrimas de suor que ficam embebidas na lombada – e, por isso, a lombada parece desgastada pelo tempo (fenómeno que tem o selo da normalidade). No livro, as palavras vêm vertidas com a suavidade do tempo. Adornadas pelo ouro que solfeja desde o interior, à medida que percorres as avenidas dedilhadas pelo autor. No fim de contas, o livro é uma coautoria. Escrito a duas mãos, em sintonia. Por vezes, regressa a páginas já visitadas. Escolhe-as ao acaso. Relê-as. Só para perceberes as frutas que amadureceram, para contrastares as melodias ciciadas dantes com as que ocupam o lugar no tempo em que essas páginas forem relidas. Faz anotações para memória futura. Escolhe as melhores histórias enquanto esperas pelas que vierem depois. Porque contos cheios de encanto hão de continuar a emoldurar o tempo de então, entoando frases quiméricas que chegam de mansinho à porta do ouvido. Contos cheios de encanto, para dissolver todo o vinagre que bolça de algures. Entretanto, o livro amontoa contos destes. As páginas não se cansam. Não escolhem tempos a preceito para irromperem entre as águas lodosas que estão em redor. As páginas transpiram o mel ávido que derrota as fronteiras inócuas do tempo repetido. Crescemos com as páginas bucólicas do livro. As suas páginas embebem-se num sortilégio: o de sermos nós suas musas e, ao mesmo tempo, os únicos a quem aproveita os contos fantásticos lidos nas suas letras douradas. Se cheirares as páginas deste livro, notarás o cheiro nosso. Porque elas vêm de dentro das nossas veias, sob a batuta do sangue que pulsa num frémito e que é a febre que somos em uníssono. Este livro é um best seller. Feito de vírgulas pacientemente depositadas entre palavras que o instinto manda escolher a dedo. Um livro sem fim. Nem depois da finitude que as leis do universo mandam lavrar.

27.8.15

O vigário decadente

Sol Seppy, “Entre One”, in https://www.youtube.com/watch?v=MgeJNfCXV_Q
(Ficção baseada na realidade)
O negócio foi proposto ao vigário da terra. Por dois “empreendedores” (no jargão da moda) que estiveram emigrados na América e queriam o progresso para a terriola a que estavam de regresso. Nas traseiras da igreja havia uns anexos. Dantes eram usados para a catequese e para acolher obras de caridade com o patrocínio da paróquia. Mas a modernidade trouxe a aridez demográfica (as crianças rareavam) e a retração da generosidade (a crise com dupla conotação: a da fé e a dos dinheiros).
Em estando devolutos os anexos, os empreendedores propuseram ao vigário a sua reconversão a outro ramo do negócio: um bordel. A ideia era fazer da terriola um lugar por alguma razão centrípeto. Para atrair as gentes das redondezas. Como o negócio das mulheres dos prazeres continuava a prosperar, mau grado a acintosa crise (assim concluíra o estudo de mercado com elevada cientificidade encomendado pelos empreendedores), só faltava convencer o pároco a autorizar o trepasse da atividade. O cura hesitou. Sabia que a hierarquia eclesiástica, carcomida pelo conservadorismo de sacristia, reprovaria o negócio. E sabia que os setores conservadores, de uma ponta à outra do país, não dariam sossego, protestando contra a heresia da negociata. Enquanto amadureceu as ideias, pediu recato aos empreendedores. O negócio seria segredo absoluto até ser revelado, se essa fosse a decisão do vigário.
Por fim, tomou uma resolução. Aceitou o trespasse do negócio. Assim como assim, deus não conseguira banir do planeta a profissão em que as mulheres vendem prazeres. E tal como o pároco cuidava dos males espirituais dos paroquianos, havia outra forma de tomar conta desses males – misturando a imaterialidade da alma com os prazeres tangíveis do corpo.
O vigário foi retoricamente sovado em público pelos detratores da ideia. Mas quem mais protestou foram as feministas. Protestaram contra a desigualdade selada pela decisão do sacerdote. Queriam que uma ala do bordel lhes fosse dedicada.

26.8.15

Caderno de encargos


The Durutti Column, “Tomorrow”, in https://www.youtube.com/watch?v=uvPj_5ndcxI
Os olhos perguntam ao mar se é preciso um roteiro para o futuro. Ao jeito de um caderno de encargos que inventaria os propósitos vindouros. O mar pede aos olhos para pedirem ao pensamento um pensamento sistemático sobre tamanha empreitada. Que seja o próprio pensamento a arregimentar o roteiro que deve cerzir os passos que hão de vir no depois que vem depois do exercício prospetivo. Que desideratos se inscrevem na tabela de precedências? Que desafios estão no ponto de mira? E que variáveis exteriores devem ser compulsadas, em forma de obstáculos, e se o são tão insuperáveis que mais vale prescindir de um desiderato por poder ser impossível? O pensamento tece-se, convulsivo, errando pelas margens de território desconhecido. Porque o futuro é um não tempo, conclui o pensamento em ato reflexivo. Porventura um caderno de encargos seja a forma disfarçada de algemar a vontade. Ou, apenas, de escapar à espessura do tempo atual. E por mais que não seja de esperar que o que se viesse a alistar no caderno de encargos seja de esperar, outro sobressalto despoja o caderno de encargos de visibilidade: por mais que o pensamento dê voltas sobre si mesmo, por mais que vá ao mais fundo do que há, ou que empreenda uma viagem pelo desconhecido que é o exterior, emudece-se na altura de passar ao papel o inventário das coisas esperadas da vontade vindoura. Aliás, o pensamento rejeita oráculos. Sabe que no que vier do depois que vem depois de hoje há um importante quinhão que não depende da vontade própria. E, assim como assim, tecer os mandamentos de um caderno de encargos é como agrilhoar a vontade a um tempo que ainda não é tempo tangível. O pensamento aconselha o mar a dizer aos olhos que o interrogam que não tem serventia esboçar um caderno de encargos.