16.4.15

Se legislar, não beba (ou se beber, não legisle)

Tom Waits, “Downtown Train”, in https://www.youtube.com/watch?v=hZhW76LAnTY
Tenho de começar por admitir uma notória aversão a proibições. Desconfio de proibições como quem tem uma dúvida metódica sobre coisas sobre as quais se desconfia que podem não ser boa ideia. Quando as proibições nos são apresentadas como um ato de generosidade de quem legisla, como se fosse necessário o legislador exercer um poder paternal sobre uma sociedade que não sabe tomar conta de si, desconfio ainda mais da bondade do legislador transfigurado em engenheiro social.
O governo refletiu sobre um tremendo problema social: as bebedeiras descomunais que os petizes apanham quando saem à noite. Em não sendo possível baixar a idade da maioridade, o legislador atalhou pela medida grande: já que os adolescentes são precoces em tanta coisa (só como amostra: na vida noturna e no consumo exagerado de bebidas alcoólicas), o legislador está convencido que resolve o problema proibindo a venda de bebidas espirituosas e afins a menores de idade. Estão previstas multas para os estabelecimentos de diversão que vendam bebidas alcoólicas a adolescentes espigadotes. Neste maravilhoso exercício que é tomar conta de todos nós através de lei, até se prevê que os progenitores sejam incomodados a meio da noite caso a descendência seja encontrada em estado pré-comatoso devido à ingestão excessiva de álcool.
O legislador acredita que esta lei vai funcionar. Como funcionam outras proibições decretadas com força de lei. Só para amostra: a prostituição é proibida, mas andamos em certas ruas das cidades, à luz do dia, e vemos raparigas e já não raparigas de coxa farta dispostas a venderem o corpo para deleite da clientela; e, como é sabido, nesta terra não há consumo de drogas, das mais leves às mais duras, pois a lei proíbe-o. A ingenuidade do legislador não quadra com a posição de força que ostenta quando tenciona proibir hábitos socialmente reprovados, ou quando pretende moldar o cidadão aos hábitos socialmente aconselháveis. (Nem de propósito: ontem discutia-se no parlamento uma política de incentivos à natalidade, tamanho o drama da crise demográfica. Um dia destes, o legislador fará as vezes de conselheiro sexual. Ou punirá – com multa, ou em sede fiscal – aqueles casais que não derem o seu contributo para derrotar a crise demográfica, parindo farta descendência.)
Para o anarquista sem remédio, as tentativas de engenharia social pela batuta da lei são risíveis. Elas encerram em si o cadafalso onde o legislador se vai perder, o cadafalso da perda de autoridade, ou da autoridade espezinhada por tantos que mandam a lei às malvas. É o que acontece quando se inventam leis que estão condenadas a não serem respeitadas por quase ninguém. Não sei se o legislador tem inveja dos jovenzinhos que enfrascam bebidas alcoólicas até se esquecerem de quem são. Talvez tenha receio que a horda juvenil esgote o stock de bebidas, não sobrando nada para o legislador afogar as mágoas. Ou então, ao legiferar, porventura o legislador estaria ébrio. Só pode ser, tão ditirâmbica é esta lei.
Para terminar: dizem algumas luminárias que nunca tivemos governo tão liberal (ou “neoliberal”, num neologismo de incerta definição). Fica provado com leis como esta. Têm mesmo pergaminhos liberais. Aconselha-se essas luminárias a tirarem um curso rápido de filosofia política e de história das ideias políticas, para não caírem num ridículo ainda maior que o legislador ingénuo.

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