8.1.15

Shipless ocean (a short story of two tales)

Brendan Perry, "Song to the Siren" (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=g4en3W5U1yo
Somos reféns da maior miopia que nos consome: a indiferença. Os outros passam por não interessar para as contas de cada um. Apenas conta quem se ensimesma e os outros são alienígenas a quem se dedica a irrelevância. Destruímos o cimento da pertença. Somos fautores de um suicídio coletivo, uma autofagia que não adivinha ventos a favor para o amanhã da espécie. Em cada pessoa há um vasto oceano que não é visitado por navio nenhum. Os outros navios são logo escorraçados pela indiferença letal. Cada nau confina-se ao mar que é sua pertença. Não estima aventurar-se noutros mares. E todos os mares ficam desertos, pois o navio que é sua pertença é nativo, não conta para estas contas. Enquanto formos tributários da indiferença do outro, enquanto não deitarmos um olho ao mendigo que clama pela comiseração de quem passa, enquanto não ficarmos ultrajados quando alguém morre de morte gratuitamente violenta às mãos de outro, enquanto taparmos com o pé as perplexidades dos outros que talvez carecessem de alvitre nosso, enquanto houver disto e de outro tanto mais, somos apenas um espectro de gente. A caminho de um gigantesco precipício.

Dizem os enamorados da moral pública (objetivada pela batuta que usam) que a indiferença é arma de destruição maciça (da espécie). Que devemos deitar os olhos aos problemas dos outros. Que o mar não merece ser uma vastidão inabitada. Mas ninguém lhes diz para não serem ardilosos no encantamento de quem lhes dá ouvidos. Somos mesmo ilhas. Não deixamos de ser ilhas nem quando temos (ou está convencionado) de lidar com outros. Não se vira o espírito para dentro do corpo. Admite-se o ADN irrepetível. Quando sobressaltos inquietam alguém, não devem os desocupados de outras empreitadas propagandear uma gelatinosa atenção como se fossem curandeiros de todos os males que gravitam fora de si. Mal fora: se mal conseguem amanhar os males que os corroem por dentro, como se podem atirar para o pedestal onde se empoleiram gurus que sossegam mortificações dos outros? Pelos dedos deste malefício, mais vale um precipício.

1 comentário:

Museu Nacional de Soares dos Reis disse...

"Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar"
(Paul Ricoeur, Da Interpretação)

https://www.youtube.com/watch?v=G8yEe55gq2c&list=PLukF-Eu8mdxY4mpEiD0PePKTJVxJ6xrO3

“World Citizen”, tema da banda sonora do filme “Babel”.
David Sylvian + Ryuichi Sakamoto