28.1.15

O Nirvana da Grécia (e, de caminho, da Europa inteira)

My Bloody Valentine, “Feed Me With Your Kiss”, in https://www.youtube.com/watch?v=s6I3JGzJAdM
(Da categoria “análise política não convencional”)
Está feita a profecia. Os deuses – as divindades gregas, bem entendido – continuam a existir. Depois de engolidas numa prolongada hibernação, em que em seu sono deixaram o povo grego nas mãos de bandidos nos governos (ou de governos de bandidos), rebelaram-se em Delfos e repuseram a justiça. A extrema-esquerda ganhou eleições.
Ainda bem. Primeiro, e metendo pelo paroquialismo da análise, dá gosto observar o prazer orgástico com que os pastores da extrema-esquerda doméstica celebraram o triunfo dos camaradas gregos. Só faz bem reconhecer o prazer da vitória dos adversários. Tanto mais que estão tão habituados a serem reduzidos à insignificância eleitoral quando vão a votos. E dá ainda mais prazer porque, imersos numa excitação adolescente, pressagiam semelhantes vitórias de partidos irmãos, ou pelo menos aparentados, por toda a Europa. Uma revoada de novos amanhãs que hão de cantar.
Segundo, faz bem ao princípio da diversidade de ecossistemas. Se há coisa enfadonha é uma paisagem monótona, receitas sempre iguais que não permitem a comparação de resultados, sempre os mesmos rostos alternando no trono do poder. E ter de suportar a jactância dos que nunca vieram para o poder, a arrogância de quem critica tudo o que mexe e nunca foi escrutinado pelas suas alternativas de poder (tivessem lá chegado). Um ecossistema variado enriquece as sociedades. Aumenta o leque de escolha. Com mais hipóteses de escolha, as pessoas têm de refletir melhor sobre o voto. As decisões dos eleitores têm tudo para serem mais racionais.
Agora que entrou um novo paradigma de governação no mapa da Europa, todos temos a ganhar. Vamos poder comparar alternativas, desta vez alternativas em ação, não apenas alternativas no plano das ideias. E os seus resultados. Só temos de esperar que a honestidade intelectual faça o seu caminho para a análise não perturbada por batotas. Não deve a governação de uns ser boicotada pela ação de outros. Nem devem os possíveis insucessos da governação ser imediatamente imputados ao boicote dos outros.
Esta vitória eleitoral é uma prova dos nove. Para testar as soluções mais radicais. Falta saber se um consegue impor a sua vontade aos outros vinte e sete países, se esse possível braço de ferro é coisa democrática – ou se perfilha a versão ensimesmada que a extrema-esquerda tem da democracia, que é fazer impor a sua vontade iluminada contra a vontade meio apedeuta da maioria. As incógnitas sobram dos despojos das eleições. Falta saber se vamos ter radicalismo em ação, se ele é consentido pelos outros parceiros europeus; ou se a extrema-esquerda põe os pés no chão e toma um cálice de realismo, moderando a radicalidade. Qualquer que seja o cenário a vir à palco, falta o mais importante, que só vem depois: perceber se Tsipras, o novo messias, não é outro Hollande.
Dê por onde der, a subida da extrema-esquerda ao poder tem um potencial heurístico. Pela primeira vez, vamos tirar do laboratório das ideias algumas, mais radicais, a que tanto se insiste em colar uma aura de superioridade intelectual. O tempo será seu julgador. Da plateia, cá estaremos no papel de espetadores (e testemunhas).

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