11.11.14

O cidadão exemplar

Nick Cave and the Bad Seeds, "We No Who U R", in https://www.youtube.com/watch?v=tjF57zEbxpI
O cidadão exemplar estava preparado para dar os tijolos necessários para cimentar o grupo a que pertencia. Sabia que havia discussões espúrias; calava-se, sufocava as ideias que viessem à espuma do pensamento se soubesse que elas vinham contra a maré. De que valia ser rebelde se a rebeldia o deixava isolado, se as provocações indispunham tanta gente (contra ele)? Queria repouso. Queria viver os dias por diante no remanso da sua vida plácida. Outros foram os tempos de indomável irreverência. Agora habituara-se à reverência dos poderosos, pois nada podia contra os poderosos. A consciência – ah, a consciência! – afeiçoa-se.
Agora vestia o pensamento pelos cânones. Domesticara-se. Aprendera a ser como os outros, aqueles que dantes acusava de capitularem perante a doentia normalidade. Mas de que adiantava ser um adiantado no tempo se as vanguardas não traziam compensações – como dizer, sem ofender os cânones, que hipotecar-se perante a bestunta materialidade pode ser malquisto? – materiais. Agora era um cidadão exemplar. Comprava os jornais do sistema pela manhã, para aprender a dizer sim ao sistema. Votava nos partidos do sistema, naqueles que davam mais garantias de vitória e que conservavam o conservadorismo sempre harmonioso. Ajudava nas causas sociais. Para que não viessem as dores de consciência, nem fosse outra vez acusado de sociopatia, era voluntário nas causas diversas que convocavam a consciência social. Até já dava esmolas (sem ser a oportunista esmola aos arrumadores de carros).
Deixara de fumar. Deixara de beber. Deixara-se de outros viciosos hábitos tão malvistos pela sociedade das apoquentações dos outros. Foi adotado pela sociedade; tinha de fazer suas as apoquentações dos outros da sociedade que o adotara. Não dizia impropérios no trânsito. Não ocorriam pensamentos desdenhosos quando esbarrava em pessoas que o arreliavam sem que soubesse porquê, a não ser que eram existências que o arreliavam. Passou a acreditar em deus(es). E perdeu as insónias todas. Num centro comunitário de apoio aos desvalidos, tomava em mãos a sua experiência de vida. Ensinava-a aos que vinham em demanda de ajuda. Mostrava como ele fora e como os em demanda de ajuda não deviam ser. Era uma lição pela antítese. Se ele mudara, todos podiam.
Agora, era tudo rosas perfumadas, céus cintilantes, dias soalheiros (mesmo em tempo plúmbeo), rostos sorridentes, pessoas adoráveis, edifícios belos, toda a música melodiosa, palavras ideários. Uma página virada. Todas as páginas viradas: um livro, todo ele novo, à espera de ver as vivazes páginas dedilhadas através das mãos novas.

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