9.9.14

O burgesso fino

In http://uploads2.wikiart.org/images/edouard-manet/the-monet-family-in-their-garden-at-argenteuil-1874(1).jpg
Tem as mãos inchadas de tantas notas ostentar. A abastança contrasta com o pardieiro de onde vem de origens. Trepou a escada do êxito. Teve olho para o negócio. E prosperou.
Começou a conviver com gente endinheirada. A imitar comportamentos. Se a linhagem dos abastados era o perfume do consumo requintado, o burgesso tinha de se aprimorar na fineza. Observador, começou por anotar comportamentos à medida que alimentava as borlas que os finos de fino recorte precisavam. Anotou o que diziam os das famílias endinheiradas e seu séquito, o que comiam, onde comiam, os temas de conversa, as vernissages obrigatórias, os objetos de ostentação, a roupa que distinguia a seita, as artes que passou a frequentar. O problema é que o berço humilde, miserável até, não deixava esconder as lacunas por onde escorriam os lapsos de língua, os lapsos de postura, os lapsos, apenas lapsos, que revelavam a terrível vacuidade em que medrava.
Fazia-se transportar em potente bólide, nem que as mãos e os pés muitas vezes não soubessem domar a potência sobredotada. O bólide passou a ficar guardado na garagem para o fisco não desconfiar dos sinais exteriores de riqueza e não o interrogar pelos parcos réditos declarados. Documentava-se, contudo, para poder intervir nas conversas de salões onde os ricos trocavam impressões de amador sobre as proezas ao volante de quem a conta bancária numa offshore permitira a compra do brinquedo. Fazia gala de amesendar em restaurantes de fino recorte gastronómico, onde se serviam à mesa os parcos repastos que faziam gala aos modismos gastronómicos do momento. O pior da transfiguração foi a dieta durante os outros dias, pois uma rechonchuda personagem não quadrava com os círculos distintos onde também havia conversas sobre as iguarias degustadas, forma física a custo e amantes proletárias  e submissas.
Ele e a consorte socializavam nos círculos das artes. Iam às óperas, mal conseguindo esconder o bocejo prolongado a sinalizar a precisão do intervalo. Iam às exposições, onde os ricaços competiam no arrematar de obras de arte como quem competia na comprovação de façanhas sexuais. Arrematou alguns quadros impressionistas. A consorte achava que a palete de cores combinava com a decoração da mansão. Nunca se lhe ouviu uma palavra hermenêutica acerca dos quadros que, por falta de espaço, passaram a preencher as paredes frias da garagem onde hibernava o bólide de elevada potência. Como se fazia constar que tinha atribulações com a gramática no discurso falado, teve lições privativas com eméritos professores. Ensinaram-lhe gramática, sintaxe, figuras de estilo e truques para manter um discurso com fio condutor e sem atropelos à língua nativa. Também aprendeu a jogar golfe.
E, tudo isto, sem que embolsasse grande prazer. Eram os imperativos da socialização com a casta de endinheirados. Às vezes, ao deitar, entrava na antecâmara dos sonhos, escorregava para o pretérito do novo rico em que se transformara. E sonhava com gastronomia popularizada, a motoreta e as viagens com o ar a esborrachar-se no rosto gordo, a música de arraial, um mundo sem pintura indecifrável, as férias no sul pejado de turistas ingleses, a boçalidade em forma de palavra e de gesto, a adiposidade a mais que, todavia, dispensava sacrifícios das dietas. Mas não podia decair. Os pergaminhos tinham sido ganhos a tanto custo, não podia decair. O mundo em simulacro era o seu habitat natural.

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